O filósofo marxista, nascido na Argentina e radicado no México, participou nos últimos anos da formação política dos quadros Morena.
A reportagem é de Zedryk Raziel, publicada por El País, 06-11-2023.
O filósofo argentino Enrique Dussel morreu na noite de domingo aos 89 anos na Cidade do México. A sua morte causou choque entre políticos e ativistas do movimento de esquerda latino-americano, para o qual contribuiu com traços identitários com as suas críticas ao eurocentrismo e o seu impulso pela descolonização do pensamento nas periferias. A morte de Dussel também foi especialmente lamentada no México, onde vivia desde 1975, e particularmente entre os membros do Morena, partido que ajudou a fundar e no qual assumiu o papel de ideólogo e formador de quadros.
Um dos líderes da filosofia da libertação, da viragem decolonial e da epistemologia do Sul, Dussel foi também um historiador e um crítico do pensamento ocidental, dos seus conceitos, da sua interpretação da realidade, dos seus fundamentos e dos seus propósitos, naqueles em que os demais não tinham lugar, ou tinham lugar como objetos de estudo, sempre bárbaros. Dado a escrever as suas obras à maneira de sucessivas “teses”, fios de pensamento, Dussel propôs que a dominação tem origem no pensamento e propôs uma ruptura epistemológica, um distanciamento do colonialismo, do machismo, do racismo e da exclusão, e uma abordagem à alteridade com uma nova perspectiva esvaziada de preconceitos. Ao propor a criação de um sistema de pensamento baseado na opressão e, portanto, libertador, sua filosofia era uma prática política.
“Contra a ontologia clássica do centro, de Hegel a Habermas, para nomear o que há de mais lúcido na Europa, surge um contradiscurso, uma Filosofia da Libertação da periferia, dos oprimidos, dos excluídos, da sombra que a luz do o ser não conseguiu iluminar, o silêncio questionador sem palavra ainda. Nosso pensamento parte do não-ser, do nada, do opaco, do outro, da exterioridade, do excluído, do mistério da falta de sentido, do grito dos pobres. É então uma ‘filosofia bárbara’, que no entanto tenta ser um projeto de trans ou metamodernidade”, escreveu Dussel na sua obra-prima, Filosofia da Libertação (Fondo de Cultura Económica, 2011).
Dussel completou sua formação em universidades europeias e ministrou cursos em universidades americanas. No México lecionou na UNAM e foi reitor interino da Universidade Autônoma da Cidade do México (UACM), escola popular criada pelo presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, como parte de um projeto para oferecer aos filhos de famílias pobres o ensino superior de educação. Em 2020 tornou-se secretário do Instituto Nacional de Formação Política do Morena, escola de quadros do partido de López Obrador, onde ministrou seminários de filosofia política, e este ano foi nomeado membro emérito do Conselho Nacional, órgão de decisão. “O partido deve ser uma escola de política e não uma máquina eleitoral”, afirmou o pensador.
Em sua Filosofia da Libertação, cuja primeira edição data de 1977, Dussel falou da importância do espaço geopolítico onde o pensamento ocorre e apontou a existência de um antigo e cada vez mais alto “muro”, uma barreira simbólica que começou a subir em 1492, ano da conquista da América, e “que separa o norte desenvolvido do sul empobrecido”. Na proposta filosófica de Dussel, a juventude e a cultura popular posicionam-se contra a pedagogia ocidental, o trabalhador assalariado e o camponês contra o capital, as mulheres e os homens contra o machismo, e as novas gerações contra o extrativismo e a destruição ecológica do planeta.
Um filósofo na Terra
Amigos que conheceram Dussel lembram-se dele como um trabalhador incansável e uma pessoa sensível e generosa com seus alunos. “A nível pessoal, o que posso dizer? Ele era adorável, um bom homem, muito generoso, sempre foi generoso com o seu tempo e um professor de várias gerações”, diz Rafael Barajas, El Fisgón, cartunista e diretor do instituto de formação de pinturas Morena. “Ele deixou muita escola entre nós. Ele tinha uma tríade sobre comportamento ético e praticava todos eles [seus postulados]. Ele era, verdadeiramente, uma pessoa impecável e, além disso, com uma lucidez impressionante”, acrescenta em entrevista.
Barajas lembra que Dussel se mudou para o México após um ataque à sua casa na Argentina. Ele ressalta que o filósofo também viveu algum tempo na Palestina, onde trabalhou como carpinteiro, e evoca os debates filosóficos que manteve com autores da magnitude de Merleau-Ponty, Habermas e Lévinas. “Devemos rever a história de Enrique Dussel à luz do que foi o discurso dominante da década de 1980, quando altos funcionários enviaram os seus filhos para estudar nos Estados Unidos e todos regressaram convertidos em neoliberais. Dussel repensa a necessidade de recuperarmos o nosso conhecimento e o nosso lugar no mundo, de revermos como se constitui o nosso conhecimento, um conhecimento eurocêntrico, na lógica da Grécia antiga, da civilização ocidental, quando aqui temos outras civilizações antigas; “Ele criticou o colonialismo ideológico e mental e releu a filosofia com base na história da América Latina”, explica El Fisgón.
O cartunista indica que a passagem de Dussel da filosofia dos livros para a prática política no partido é uma transição natural para um autor marxista – isto é, materialista – como ele. “Como bom marxista, foi um daqueles filósofos que considerou que o mundo tinha de ser transformado”, diz Barajas, aludindo a uma das Teses de Karl Marx sobre Feuerbach. “Então, ele sempre abraçou os importantes movimentos de transformação aos quais teve acesso e por isso se juntou ao esforço do Morena. Isso explica tudo, e acho que não é pouca coisa”, acrescenta.
Paco Ignacio Taibo II, diretor do Fondo de Cultura Econômica (FCE), editora estatal mexicana, recupera uma conversa que teve com Dussel para pensar em como levar as feiras do livro a todas as unidades da UACM, quando o filósofo era reitor desta universidade. “[Partimos] de como a leitura era uma componente criativa paralela à educação e que era importante fazer dos estudantes universitários leitores, não apenas leitores do que têm de usar para terminar a licenciatura, mas leitores pelo prazer de ler, criando aquilo que ligamos para a quarta perna da mesa”, diz ele por telefone. Taibo e Dussel proferiram então uma palestra sobre o prazer da leitura, o primeiro falando do ponto de vista literário, o outro do ponto de vista filosófico. “Demos uma das conferências em que mais me diverti em toda a minha vida”, resume.
Taibo, que é historiador, dividiu assento com Dussel no Conselho Nacional Morenoísta. “Lá participamos de reuniões, refletindo sobre para onde vai o Morena e como foi necessário, como posso dizer para vocês? Sacudir ideologicamente um partido que tinha a virtude de ter fortes raízes sociais e a desvantagem de se mobilizar justamente, não na luta social, mas no processo de seleção de candidatos e na luta eleitoral”, afirma. “Ele era um personagem cativante por vários motivos. Primeiro, porque era um intelectual com vocação para servir o povo, acima de tudo. Segundo, porque aplicou a sua sabedoria a uma visão de transformação da sociedade em que vivia”, indica.
Para Taibo, o antigo debate sobre o pensador que se dedica a filosofar sem agir no mundo concreto foi resolvido por Dussel com sentido de responsabilidade política: “Cada pessoa resolve de forma concreta, sob qualquer forma de militância, o problema de como você atua na sociedade em que vive. Apenas como profissional? A resposta é não”. E acrescenta que, numa de suas últimas conversas com Dussel, o autor lhe disse que estava preocupado com a recuperação de Marx: “Eu digo a ele: ‘Bom, nós também estamos recuperando Bakunin de uma vez, certo?’ Não porque eu seja mais anarquista e ele mais marxista, mas porque ambos estávamos preocupados com o problema da cultura política da esquerda”, diz Taibo, e conclui: “Ambos concordamos que uma esquerda que não lê, um analfabeto esquerda “não sobrou.”
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Enrique Dussel, fundador da filosofia da libertação, morre aos 89 anos – Instituto Humanitas Unisinos – IHU