Só é contra a descriminalização das drogas quem cai em fake news, escreve Anita Krepp
Quando digo que o Senado Federal está indo na contramão do mundo, pela maneira com que decidiu se posicionar nas recentes discussões sobre política de drogas, eu não exagero. Além de sermos praticamente o último país na América Latina a manter a criminalização do porte de pequenas quantidades de droga para uso pessoal, o Brasil também atua na oposição do que preconiza o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Na semana passada, a ONU publicou um documento pedindo que as políticas de drogas de seus Estados-membros protejam, antes de tudo, os direitos humanos. Se tais políticas foram construídas com o objetivo de proteger os cidadãos, mas o que vemos na prática é a violação e a perseguição dos direitos dessa mesma população, quer dizer que passou da hora de uma revisão. E é essa, justamente, a proposta do alto comissariado da instituição.
“Se for eficazmente concebida e implementada, a descriminalização pode ser um instrumento poderoso para garantir que os direitos das pessoas que consomem drogas sejam protegidos”, diz o relatório, que talvez ainda não tenha chegado às mãos de Rodrigo Pacheco, a personificação do atraso na atualização necessária e urgente das políticas brasileiras de drogas.
Enquanto isso, ao mesmo tempo em que as Nações Unidas intercediam para que seus Estados-membros substituíssem medidas punitivas por intervenções baseadas na saúde pública e nos direitos humanos, o presidente do Senado apresentava a PEC para endurecer ainda mais a Lei de Drogas no Brasil, propondo a criminalização do porte de qualquer droga, em qualquer quantidade. Precisava mesmo impor tamanho retrocesso social a todos nós, brasileiros, só para desafiar o STF?
ESPELHO DE QUEM?
Segundo o próprio Pacheco, a proposta de emenda espelharia um desejo da maioria da sociedade. Alto lá, senador! Certamente, a sociedade brasileira não quer lotar seus presídios com usuários de drogas. Ou alguém, em sã consciência, prefere bancar prisões injustas com seus impostos em vez de, com o mesmo dinheiro, promover o acolhimento pelo viés da saúde, deixando de gastar com a guerra contra os pretos e pobres das comunidades desfavorecidas disfarçada de guerra às drogas?
Pensando bem, talvez a parcela da sociedade a quem Pacheco se refira seja aquela exposta à desinformação promovida, em muitos casos, pelos próprios congressistas, que, numa campanha movida a interesses pessoais —ou seria mesmo limitação intelectual?—, desconsidera que promover informações falsas, seja não só antiético, mas, acima de tudo, um crime que deveria chocar bem mais do que tem chocado, e ser repreendido à altura do dano que causa.
O exemplo mais fresquinho de fake news promovida por um congressista acaba de sair do forno. Sim, é dele mesmo, Osmar Terra, hoje deputado federal, que ficou nacionalmente famoso pela prática de espalhar informações mentirosas durante as ondas mais fortes de covid. “Depois que o prefeito de Nova York promoveu a liberação das drogas na cidade, aconteceu essa tragédia”, publicou Terra em suas redes sociais, em alusão a uma notícia sobre a morte de uma criança por aspiração de fentanil.
Seu objetivo, claro, era criar confusão relacionando a legalização da cannabis em NY –que, por sua vez, promove educação, equidade social e oficializa um comércio que já existia– com a epidemia de fentanil, opioide com características anestésicas, que vem causando a morte por overdose de milhares de pessoas nos EUA. A propósito, não há registros de alguém que tenha falecido em qualquer parte do mundo por overdose de cannabis.
É PRECISO EDUCAÇÃO E CORAGEM
As PECs absurdas e as fake news criminosas só deixam mais flagrante que, o que anda faltando −há muito tempo, diga-se− é a educação sobre a cannabis e as demais drogas, seus riscos e suas diversas possibilidades de uso. Como pode ser possível que 76% dos brasileiros sejam favoráveis ao uso medicinal da cannabis, enquanto 72% estejam contra o uso adulto da erva? Esses números foram revelados pela empresa de pesquisa DataFolha, que divulgou no sábado (23.set.2023) os resultados de um levantamento sobre o uso e a percepção da cannabis pela sociedade.
Aos favoráveis ao uso chamado medicinal, talvez falte contextualizar que, além dessa modalidade medicalizada, digamos, existe um uso terapêutico, que não carece de prescrição médica. Fumar um cigarro de maconha antes de dormir para lidar com a insônia, por exemplo, pode ser visto como medicinal ou recreativo. Vai da interpretação e da boa vontade de cada um.
E a moça que fuma quando a cólica ataca? E aquele seu amigo que, em vez de tomar 3 doses de uísque quando chega do trabalho, prefere fumar um para desestressar? São todos esses usos que melhoram a qualidade de vida e não precisam, necessariamente, de um médico assinando embaixo para que os efeitos sejam sentidos e aproveitados.
O dado que mais me chamou a atenção, no entanto, foi o que apontou que 20% dos brasileiros afirmam ter usado maconha recreativamente pelo menos uma vez na vida, enquanto só 3% já fizeram uso da erva para fins medicinais. E mesmo assim, muito curiosamente, os esforços pela regulamentação são feitos principalmente pela turma do uso medicinal. Por outro lado, a imensa maioria desses 20% ainda está dentro do armário, provavelmente sem ter ideia da força que seu posicionamento traria à causa. Só a educação e a coragem de assumir publicamente a própria história com a cannabis podem nos salvar do retrocesso.