A força do voto latino: Eleições municipais de 28 de maio de 2023 e a caça ao eleitor “hispano”

A força do voto latino: Eleições municipais de 28 de maio de 2023 e a caça ao eleitor “hispano”

(Foto: El Periodico)

Existe um voto dito “latino” na Espanha? Cada consulta eleitoral, na Espanha e em outros lugares, estimula os farejadores de eleitores a segmentar e a buscar os perfis mais variados. Todos os tipos de nicho são explorados. Atualmente, os partidos políticos ibéricos estão numa tensão extrema. O eleitorado vai renovar no dia 28 de maio seus prefeitos municipais, os deputados regionais de 12 das 17 Comunidades Autônomas espanholas e, no próximo outono, seus deputados e senadores nacionais.

A concorrência é dura. Desta vez, um nicho em potencial que permaneceu inexplorado, o dos eleitores latinos, tem sido cortejado. Diversas crises, econômicas, humanitárias e políticas abalaram, há pelo menos vinte anos, a América Latina. Cada uma delas alimentou fluxos migratórios, mais ou menos importantes, mas repetitivos. Colombianos, cubanos, dominicanos, equatorianos, hondurenhos, peruanos, venezuelanos se juntaram a grupos mais antigos de argentinos, chilenos e uruguaios. A Espanha, em declínio demográfico, encorajou esse movimento, aprovando, por exemplo, uma lei histórica que permitiu às famílias de exilados obter um passaporte espanhol, e facilitando a instalação de migrantes nas pequenas cidades despovoadas de Castela. Às vezes, esse encorajamento veio por meio do aquecimento do mercado de solteiros da zona rural. Esse processo, no entanto, não ocorre sem mal-entendidos de todos os tipos, como mostrou o cineasta Iciar Bollain, em seu filme agridoce Flores de otro mundo.

Os ajustamentos humanos inesperados, vistos deste lado dos Pirineus, não foram fáceis. Apelidados de “Sudacas”, os primeiros latinos foram vítimas de rejeição e agressões. Os cartunistas argentinos José Muñoz e Carlos Sampayo testemunharam isso em seu livro “Sudor Sudaca”, em 1986. Seis anos depois, em 13 de novembro de 1992, uma doméstica dominicana, Lucrecia Pérez, foi assassinada em Madri por jovens da extrema-direita. As coisas evoluíram muito bem desde então. Não sem razão o Grammy Latino foi transferido este ano de Los Angeles para Sevilha.

É verdade que no fim das contas, de 1992 até hoje, os espanhóis “da gema” se acostumaram com a diversidade. Segundo uma pesquisa universitária, 23% dos espanhóis têm simpatia pelos latino-americanos, enquanto apenas 7,3% têm o mesmo sentimento pelos “europeus” [1]. Além disso, os latinos de 2023 estão cada vez mais integrados. 1.624.807 de pessoas da América Latina já têm nacionalidade espanhola. Outras 12.453, cujos países de origem assinaram acordos de reciprocidade com a Espanha, o que lhes permitiu manter sua nacionalidade, puderam se inscrever para participar do pleito municipal. Eles “pesam” 4% do eleitorado do país, e 8% em Madri. Isso é 21% a mais do que nas eleições gerais de 10 de novembro de 2019 [2].

Eleitores de origem ibero-americana: equatorianos: 96.022; colombianos: 55.634; dominicanos: 42.053; venezuelanos: 41.503; argentinos: 23.691; bolivianos: 22.470; cubanos: 18.885; mexicanos: 8.830; paraguaios: 7.927; chilenos: 7.118 [3].
Foi logicamente de Madri, e da direita espanhola, que veio um ostentoso “abrazo” eleitoral.

“O voto de Alexandre, Kevin, Nicole e Jéssica é cada vez mais disputado”, era a manchete de um diário madrileno em 27 de abril de 2023. Um rápido lembrete: a Comunidade de Madri, ou seja, a capital espanhola e seus subúrbios próximos, abriga, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas (INE), 130.724 nativos da Venezuela, 129.152 do Equador, 124.113 da Colômbia, 107.532 do Peru [4]. O Partido Popular, uma força histórica da direita, lidera a Comunidade e a cidade de Madri. Muitos imigrantes, cubanos, venezuelanos, hostis a seus respectivos governos, têm procurado há alguns anos o Partido Popular. Com uma sensibilidade eleitoral certeira, o PP acusa a coalizão PSOE/PODEMOS de uma simpatia equivocada com os regimes de Miguel Díaz-Canel (Cuba) e Nicolás Maduro (Venezuela), descritos como ditatoriais. O pai de Juan Guaidó, ex-presidente autoproclamado da Venezuela, foi assim eleito deputado europeu do PP em 2019. O Vox, formação de extrema-direita, está em Madri, liderado por um hispano-cubano, Rocío Monasterio.

O Partido Popular apostou deliberadamente na onda latina, nesta campanha municipal e regional. Aconselhado por Gustavo Eustache, um venezuelano, responsável pelo serviço regional dos “Novos madrilenos”, o Partido Popular organizou uma manifestação, em 25 de março, sob o lema “A Europa é latina”. Um cantor de “reggaeton” dominicano, Henry Mendez, fez dançar a presidente do PP da Comunidade de Madri, candidata a sua sucessão, Isabel Díaz Ayuso, e o prefeito de Madrid, também ele do PP e em disputa eleitoral, José Luis Martínez Almeida.  Uma pastora pentecostal colombiana, Yadira Maestre Wilches, abençoou o estado-maior do Partido Popular. A máquina eleitoral foi então instalada. Uma candidata cubano-espanhola, Janette Novo, foi enviada para conquistar Rivas, periferia madrilena, último bastião municipal detido pela Esquerda Unida (ex-PCE). Orlando Chacón Tabares, nascido na Colômbia, figura nas sondagens como elegível para o Conselho Municipal de Madri. O Vox escolheu outra cubana, Rocío Monasterio, para tentar disputar pelo PP a região madrilena.

Uma pesquisadora, Erika Rodriguez, lembrou oportunamente que o voto latino não era monolítico [5]. Isso é confirmado pela pesquisa Sigma Dos, com base em dados do CIS, Centro de Pesquisa Sociológica. Cubanos e venezuelanos votariam, de acordo com esta pesquisa, principalmente à direita. Enquanto argentinos, equatorianos, paraguaios, peruanos e uruguaios se inclinariam para a esquerda. Para bolivianos, chilenos e colombianos, as escolhas seriam equilibradas.

A esquerda tem denunciado a mistura de gêneros entre religião e política, como receita “bolsonarista”. Além disso, PSOE e Podemos olham mais para a América Ibérica progressista e muito menos para os migrantes do outro lado do Atlântico, presentes em solo espanhol. O pequeno partido, bem à esquerda, Más Madrid, dissidência do Podemos, anima por outro lado as associações esportivas equatorianas e peruanas e apresenta candidatas latinas, como a salvadorenha Carolina Elias. No entanto, não há, à esquerda, ao contrário da direita, uma mobilização particular em relação aos eleitores latinos. Apesar disso, eles fazem parte da paisagem e podem ser os “fiéis da balança”, a tal ponto que essa paisagem foi retratada, no desvio de uma frase anódina, pelo acadêmico Antonio Muñoz Molina, que da varanda de seu apartamento, escreve: vejo “as cadeiras de rodas de idosos, de boca aberta, cabeça baixa, empurrados por migrantes latinos…”.

Notas

Texto publicado originalmente em francês, no dia 17 de maio de 2023, no site Nouveaux espaces latinos, seção Actualités: Amérique Latine, Lyon/França, com o título original “Éclosion d’un vote latino en Espagne: municipales du 28 mai 2023 et chasse à l’électeur ‘hispano’”. Disponível aqui. Tradução de Manoel Sebastião Alves Filho e Luzmara Curcino.

[1] Enquete da Universidad de Comillas, em El País, 10 de outubro de 2022, p. 23.

[2] El Mundo, 27 de abril de 2023, p. 2/5. 

[3] El Mundo, 27 de abril de 2023, p. 3. 

[4] El País, 10 de outubro de 2022, p. 23. 

[5] Erika Rodriguez, El voto latino no se puede tragar enterro, Madrid, Fundácion alternativas, 2023. 

Antonio Muñoz Molina, Volver a donde. Barcelona: Planeta, 2021, p. 68.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.

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