Por ANDRÉS TZEIMAN & DANILO ENRICO MARTUSCELLI
Introdução dos organizadores do livro recém-lançado “La crisis de la democracia en América Latina”
1.
No início da terceira década do século XXI, a conjuntura latino-americana defronta-se com as coordenadas estabelecidas por três fenômenos que se desenvolvem simultaneamente e de forma justaposta. Esses fenômenos servem como um marco geral da crise democrática atualmente em curso em nossa região, que será analisada nas páginas deste livro coletivo.
A primeira delas, sem dúvida, refere-se ao contexto global. Três décadas após o surgimento de um mundo unipolar (após a queda do Muro de Berlim em 1989), a ordem internacional enfrenta hoje uma situação de descontinuidade hegemônica. A liderança unipolar dos Estados Unidos está em claro declínio, fenômeno que tem se expressado de forma contundente nos últimos anos em dois momentos políticos.
Primeiro, durante o governo de Donald Trump, quando, sob o slogan America first e como resultado da guerra comercial com a China, a ideologia da globalização que predominava na ordem internacional desde a década de 1990 (precisamente quando os Estados Unidos passaram a deter inequivocamente sua liderança em âmbito global) foi questionada.
Depois, em segundo lugar, em janeiro de 2021, quando a tomada do Capitólio expôs aos olhos do mundo as inconsistências e fraquezas do sistema democrático dentro das fronteiras dos próprios Estados Unidos. Da mesma forma, esse declínio da hegemonia estadunidense convive com o avanço de duas potências, como China e Rússia, que, no entanto, ainda não consolidaram definitivamente os contornos de uma ordem global multipolar e alternativa.
A guerra na Ucrânia, desencadeada em 2022, é um capítulo importante desse processo de transição. Levando em conta esse panorama, está se configurando um cenário que o ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, chamou de “tempo histórico liminar”. Ou seja, uma situação marcada pela suspensão do tempo histórico, na qual os horizontes do futuro não são claros e, portanto, tende a predominar a incerteza do porvir como modo de vida e de organização política e social.
Vale ressaltar, nesse sentido, que a pandemia da COVID- 19, iniciada no começo do ano de 2020, exacerbou os traços de incerteza que marcam esse cenário. Como consequência, particularmente no que diz respeito à nossa região, as elites e as classes dominantes locais demonstram um alto nível de perplexidade diante dessa vacância hegemônica global, colocando assim uma grande dúvida sobre o projeto econômico, político e social a ser desenvolvido na e para a América Latina.
O segundo fenômeno que marca a situação regional é a reação conservadora à implantação de governos progressistas nos primeiros quinze anos do século XXI na América Latina. A harmonia continental alcançada pelos movimentos e lideranças políticas progressistas nessa década e meia, em que ocorreram processos de democratização da vida social e de ampliação dos direitos das grandes maiorias populares, teve como resposta uma contestação de forças conservadoras e antidemocráticas, tanto em cada um dos países em questão quanto em âmbito continental.
Embora nos últimos cinco anos tenha havido mutações e radicalizações nas características e perspectivas desse giro conservador (que esta obra coletiva pretende explorar mais detalhadamente), o rastro “antiprogressista” continua sendo um marco de época, entendido como a necessidade percebida pelas classes dominantes de extirpar a possibilidade de ressurgimento de processos de democratização e ampliação de direitos em benefício dos setores populares.
Finalmente, o terceiro fenômeno que organiza nossa conjuntura está diretamente ligado aos dois anteriores. No contexto da vacância hegemônica global e dos processos de revanche social na América Latina, a crescente contradição entre neoliberalismo e democracia está se manifestando em nossa região com toda sua força. Se nos Estados Unidos e na Europa, após a crise de 2008, o mal-estar social diante do neoliberalismo recarregado se expressou com o surgimento de novas direitas radicalizadas, na América Latina esse processo não se esgotou nesse aspecto, mas tem fortes repercussões no desenvolvimento dos próprios sistemas democráticos.
2.
Aqui identificamos e procuramos analisar três derivas nessa direção na atual situação latino-americana:
(i) O neogolpismo. Diante da adoção de políticas por governos democráticos que desobedecem aos ditames impostos pelas classes dominantes, surgem novas formas de produzir rupturas para alterar a dinâmica institucional. Esse fenômeno tem uma dimensão histórica notória. No século XX, as rupturas institucionais na América Latina ocorreram fundamentalmente por meio da irrupção de regimes militares que se autoproclamavam e se apresentavam explicitamente como uma ruptura com a rotina das instituições democráticas, mas, no contexto atual, as novas formas de golpes de Estado são realizadas por meios alternativos.
A ingerência do Legislativo sobre o Executivo, juntamente com a perseguição de lideranças políticas pelo Judiciário em conluio com a grande mídia e grupos econômicos concentrados (conhecida como lawfare), constituem no século XXI as novas modalidades de quebra das regras dos sistemas democrático-institucionais.
Com relação à deriva do neogolpismo, é importante destacar que os golpes de Estado contra governos progressistas que foram efetivamente consumados, foram acompanhados do aprofundamento das políticas neoliberais. Esse é um aspecto que os diferencia dos golpes das décadas de 1960 e 1970, que foram marcados pela implementação variável de políticas desenvolvimentistas e neoliberais, a depender dos diferentes casos nacionais.
(ii) A constituição de regimes políticos híbridos. Se o neogolpismo nos remete a rupturas institucionais por meio das quais são provocadas rupturas ou mudanças forçadas de governos, uma nova ameaça paira ao mesmo tempo sobre o desenvolvimento das democracias latino-americanas, mesmo dentro dos mandatos eleitos pelo voto popular: a constituição de regimes políticos híbridos.
O deslocamento forçado de faculdades políticas do Executivo para setores do Legislativo ou do Judiciário estabelece sérias limitações à possibilidade de deliberação dos representantes que foram eleitos/as de acordo com o princípio da soberania popular. Portanto, a ruptura da ordem não é consumada exclusivamente por meio de um golpe (duro ou brando, estilo antigo ou novo), mas é imposta diariamente por meio de um crescente deslocamento das competências políticas para fora dos poderes executivos. Isso se produz em conjunto com forças fora do sistema político no sentido estrito do termo (estamos falando essencialmente de poder econômico e de poder midiático concentrado).
Assim, com o surgimento de lideranças e/ou forças políticas cuja eleição democrática se baseia na promessa de produzir transformações em benefício das grandes maiorias sociais, a margem de decisão desses governos se reduz consideravelmente (a ponto de se tornar praticamente nula em alguns casos) como consequência de um aumento das competências atribuídas a outros poderes em nome do próprio sistema democrático.
(iii) A radicalização autoritária e o surgimento e a ascensão das forças de extrema direita. A contradição entre neoliberalismo e democracia se expressa na irrupção de forças políticas de extrema-direita que buscam modificar drasticamente os limites do sistema democrático com o objetivo de transformar a violência em uma característica permanente da organização da vida social, tornando-a uma característica inerente a esse sistema.
Dessa forma, podemos assinalar que, se o pacto democrático forjado (explícita ou implicitamente) na década de 1980 na região (após o disciplinamento popular imposto pelas ditaduras militares da década de 1970) impunha uma harmonia entre o modelo econômico neoliberal e as instituições democrático-representativas, isso ocorria sob o pretexto de pôr fim ao exercício permanente da violência como organizadora da convivência social.
Ao contrário, hoje, quatro décadas após o início desse pacto, emergem forças políticas com crescente inserção e capacidade de irradiação nas massas populares e, principalmente, nas classes médias, que proclamam e expressam na esfera pública o exercício da violência física e simbólica (cujas fronteiras, aliás, estão cada vez mais tênues). Nesse contexto, o racismo, o classismo, a xenofobia, a misoginia, a homofobia e a transfobia se tornaram uma característica permanente e inerente da vida política da região.
É claro que essas características tornam a existência de um sistema democrático indistinguível de um sistema autoritário, apesar do funcionamento do sistema eleitoral e da dinâmica estritamente formal, embora já bastante prejudicada, das instituições representativas. A negação e até mesmo a aniquilação do outro se tornaram uma paisagem cotidiana de nossa cultura política. Por essa razão, os conceitos de fascismo, neofascismo ou pós-fascismo estão ressurgindo na situação atual como parte do vocabulário usado para caracterizar os processos sociopolíticos e as forças políticas da extrema-direita em muitos dos países da região.
3.
Dessa forma, esta obra coletiva pretende refletir sobre as três dimensões mencionadas da crise democrática que afeta atualmente a América Latina. Nesse sentido, além desta breve introdução que serve como apresentação de suas chaves gerais de leitura, o volume será dividido em três seções, nas quais serão realizadas abordagens teóricas e estudos de casos nacionais.
Na primeira seção, os artigos buscarão realizar uma abordagem teórica, tanto para o contexto político geral em que a América Latina se encontra quanto para as diferentes formas de conceituar a crise democrática. Para isso, serão exploradas categorias clássicas da teoria política, juntamente com outros conceitos mais inovadores, forjados no calor do último ciclo político da região. Em particular, os três artigos que compõem esta primeira parte se concentrarão, respectivamente, na conceituação dos regimes políticos contemporâneos, na caracterização do neogolpismo e na articulação singular entre o neoliberalismo e a moralidade familiarista que existe nas direitas nativas no contexto atual.
A segunda seção, por sua vez, trata de processos sociopolíticos nos quais são analisados conflitos que mostram, em diferentes casos nacionais, o confronto de forças que levou à crise atual. Descartando como ponto de partida uma perspectiva determinista que poderia pensar a crise democrática como resultado da ação de um contexto externo ou de forças exógenas, os diferentes trabalhos tentarão pensar as disputas entre classes, frações de classes e grupos sociais que dão origem à crise e que, fundamentalmente, explicam por que a crise assume determinadas formas e se processa sob modalidades específicas no campo político.
Precisamente, as diferenças entre as histórias de luta, as relações de forças e os sujeitos sociais e políticos, de acordo com os diferentes casos nacionais, permitirão aos/às leitores/as observar nos diferentes artigos desta seção a diversidade com que um ciclo comum (como a atual crise democrática) se expressa politicamente em nossa região.
Por fim, a terceira seção se concentra na abordagem da radicalização autoritária e no fenômeno do surgimento e ascensão das forças de extrema-direita nos últimos anos em nossa região. Mais uma vez, os diferentes artigos examinarão distintos casos nacionais a fim de mostrar a diversidade desse fenômeno de acordo com a heterogeneidade das tradições político-ideológicas na história das direitas nativas e com o desenvolvimento mais recente dos conflitos políticos.
Nesta seção, os trabalhos também serão abordados a partir de diferentes perspectivas, com o objetivo de enriquecer o exame das novas formações da extrema direita. A sociologia histórica, a crítica ideológica e a ciência política são os diferentes veículos disciplinares usados nos diversos textos para abordar um fenômeno que irrompeu na região nos últimos tempos e que, portanto, merece ser estudado de diferentes ângulos para compreender a complexidade que o caracteriza. Assim, serão analisadas as experiências políticas, os imaginários e as representações que fazem parte da radicalização autoritária atualmente em pleno andamento em nossa região.
Certamente, devemos reconhecer que esse trabalho coletivo deixou algumas tarefas pendentes. Mesmo que este volume abranja uma gama bastante ampla de casos nacionais (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru), ele não cobre todos os países da região. Embora saibamos que tal objetivo implicaria em um trabalho de dimensões muito difíceis de serem abarcadas, é necessário admitir ausências substanciais, como são os casos de Uruguai, Paraguai e Venezuela, este último extremamente importante no cenário geopolítico das duas últimas décadas.
Também não conseguimos abordar as sub-regiões da América Central e do Caribe, tão ignorada pelos intelectuais do Cone Sul (ao qual, aliás, nós, os organizadores deste livro, pertencemos). Isso merece não apenas o reconhecimento e a autocrítica como a que estamos tentando expressar aqui, mas também uma observação crítica tanto das assimetrias que persistem no sistema acadêmico entre os diferentes países quanto da inadequação dos vasos comunicantes entre as instituições universitárias das diferentes sub-regiões da América Latina.
Não temos dúvidas: ainda há muito trabalho a ser feito nesse sentido. De todo modo, acreditamos que essas lacunas não invalidam a riqueza deste trabalho e, muito menos, o potencial crítico concentrado em suas páginas.
Para concluir esta breve introdução e deixar os/as leitores/as em contato com os/as autores/as de cada um dos capítulos, resta dizer que esta obra coletiva pretende dar conta das múltiplas dimensões que se evidenciam na atual conjuntura latino-americana. Reconhecendo a centralidade do contexto global para pensar a realidade da América Latina, este volume busca refletir sobre a inscrição da região nesse quadro.
Mas o faz considerando o papel fundamental desempenhado pela longa história das classes sociais e suas tradições políticas, as disputas do passado recente, bem como a especificidade que os conflitos sociopolíticos assumem nessas latitudes. Sem perder de vista, nesse último aspecto, o fato de que tanto as irrupções plebeias quanto as respostas autoritárias das classes dominantes a elas, adquirem um lugar primordial quando se trata de encontrar formas de resolver a crise atual.
Não devemos nos esquecer, como René Zavaleta Mercado costumava nos lembrar constantemente, que as crises contêm um enorme potencial como forma de visibilidade e conhecimento. Em meio ao caos global, assumir a presença da crise e tentar entendê-la, como propomos neste livro, não parece pouca coisa.
*Andrés Tzeiman é professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de Buenos Aires (UBA).
*Danilo Enrico Martuscelli é professor de ciência política na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Referência
Andrés Tzeiman & Danilo Enrico Martuscelli (orgs). La crisis de la democracia en América Latina. Buenos Aires, CLACSO, 2024, 386 págs.
O livro pode ser acessado na íntegra e gratuitamente no link: https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/249627/1/La-crisis-Tzeiman.pdf
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