Os movimentos populares haitianos organizados esperam uma avaliação imparcial do Brasil e da comunidade internacional sobre o legado da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). “O balanço da Minustah no Haiti foi catastrófico para o povo haitiano. Contribuiu muito para enfraquecer o Estado. Contribuiu para aumentar a dependência frente aos Estados Unidos. E gerou uma aliança estratégica com a extrema direita”, afirmou o economista e professor haitiano Camille Chambers.
A missão, que funcionou entre 2005 e 2017, foi comandada pelo Brasil. Um dos comandantes da iniciativa foi o general Augusto Heleno, que posteriormente foi ministro do governo Bolsonaro e é suspeito de envolvimento com os atos golpistas de 8 de janeiro. Chambers lembrou que, além das consequências políticas, a Minustah foi responsável pelo abandono de crianças haitianas, filhas de soldados brasileiros, e pela epidemia de cólera, doença levada por soldados nepaleses que vitimou cerca de 40 mil pessoas no país.
“Alguns militares até disseram que o trabalho das tropas brasileiras no Haiti foi um treinamento para reforçar a repressão e o controle das favelas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Portanto, espero que o atual governo brasileiro compreenda essa questão e permita o desenvolvimento de uma nova cooperação que realmente leve em consideração os interesses e a vontade do povo do Haiti”, disse.
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Chambers é integrante da Plataforma para o Desenvolvimento Alternativo do Haiti (Papda), uma coalização de organizações populares que existe desde 1995 e luta contra políticas neoliberais. O economista é um dos principais intelectuais e dirigentes políticos do Haiti e recebeu o Brasil de Fato para uma entrevista em conjunto com o jornal mexicano La Jornada, na capital do país, Porto Príncipe.
Na entrevista, ele também falou sobre a dificuldade de integração do Haiti a América Latina e ao Caribe em termos políticos, econômicos e comerciais. “Temos uma integração incompleta”. Para Chambers houve um isolamento do Haiti por outros países da América Latina desde a Revolução Haitiana em 1804, mas considera a conexão com o continente essencial para o desenvolvimento do país. “Deveríamos desenvolver uma diplomacia cidadã agressiva para ligar o Haiti à luta dos povos dos afrodescendentes na América do Norte e em todo o continente”.
Chambers também falou sobre a rejeição do povo haitiano a uma nova intervenção externa, as dificuldades educacionais do país e a importância da Revolução Haitiana para os rumos do continente. Leia a entrevista completa a seguir:
O que é e quais são os objetivos da Plataforma para o Desenvolvimento Alternativo do Haiti (Papda).
Camille Chalmers: É uma coalizão de organizações nascida em 1995. Naquela época havíamos passado por uma mudança cultural importante, por causa do golpe de Estado de 1991 contra o governo de Jean-Bertrand Aristide, e em 1994 foi feita uma restauração, um retorno à Constituição. Estávamos em um período muito decisivo para a política haitiana, porque havia a contradição de que o retorno de Aristide era uma vitória popular que permitiria neutralizar a ofensiva da direita que buscava restaurar a ditadura, mas, ao mesmo tempo, a condição para a volta dele era a aplicação de um novo plano de ajuste estrutural. Então, para eles, era o cenário ideal ter um líder popular que aplicasse as medidas estabelecidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
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Por isso, fundamos a Papda, para explicar qual era o conteúdo desse plano, quais as consequências dele e por que os Estados Unidos apoiaram o retorno de Aristide com essa condição. Criamos, então, uma plataforma de organizações para lutar contra as políticas neoliberais.
A Papda também surgiu de um processo coletivo de autoavaliação dos movimentos sociais e populares, que perceberam que após a experiência do golpe era necessária uma reavaliação para desenhar novas estratégias. Assim, o principal objetivo da Papda era lutar contra as políticas neoliberais, garantir a coesão dentro do movimento popular e social anti-imperialista e também trabalhar para aproximar os movimentos sociais haitianos do movimento anti-imperialista internacional, da América Latina e Caribe, mais especificamente.
Em termos continentais, quais são os desafios da integração latino-americana e caribenha para o Haiti?
Bom, primeiro temos que colocar isso em dois níveis, o nível caribenho e o nível latino-americano e caribenho. Durante o governo de Hugo Chávez [na Venezuela], o Haiti se beneficiou de um programa muito importante, chamado Petrocaribe, que permitiu ao Estado haitiano ter acesso a uma grande liquidez – 400 a 500 milhões de dólares por ano. Pela primeira vez, o Estado haitiano teve acesso a isso sem restrições. Além disso, desde 1998, existe uma cooperação com Cuba, uma brigada médica cubana aqui, muito importante, que tem feito um trabalho maravilhoso na saúde pública. Embora o governo de Jovenal Moïse tenha tentado cancelar esse programa, não conseguiu. Porque a população tomou a frente para manter os médicos cubanos. Construiu-se com eles uma relação muito bonita de fraternidade e solidariedade.
Depois do golpe de 1991, participamos de uma assembleia chamada Assembleia Popular do Caribe (Caricom), que é um agrupamento de todas as organizações anti-imperialistas da região. E pudemos informar aos irmãos e irmãs caribenhos o que estava acontecendo em relação ao golpe e, em muitos países caribenhos, a população se mobilizou. Os países da Caricom fizeram todo um trabalho de lobby e pressão para acabar com o golpe militar. Depois disso, quando Aristide voltou à presidência, foi estabelecido um processo de negociação para a integração do Haiti no Caricom. Portanto, foi um passo muito importante, porque o Haiti vive isolado desde 1804, foi um passo importante de integração a uma estrutura regional.
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Aquela foi uma integração incompleta. Por exemplo, embora o Haiti seja o país com a maior população em todo a Caricom – somos mais de 50% da população total do Caricom –, quando a Caricom se reúne, eles falam em inglês. O crioulo [idioma oficial do país ao lado do francês] não é um instrumento de trabalho. Há também muita marginalização do Haiti sob o pretexto da migração ilegal. Então estamos dizendo que, para a integração completa do Haiti, devemos primeiro integrar o crioulo como instrumento de trabalho da Caricom e devemos também desenvolver todo um trabalho para que se conheça melhor não só a trajetória histórica do Haiti, como também a cultura haitiana.
Existe, por exemplo, uma procura por produtos artesanais do Haiti vinda de todo o Caribe, mas ela não pode ser concretizada porque, em primeiro lugar, não é conhecida e, em segundo, não existem circuitos diretos de comercialização. Para produtos artesanais, por exemplo, há uma forte demanda por produtos artesanais haitianos em Trinidad e Tobago, mas é preciso passar por Miami. Então, quando [os produtos] chegam a Trinidad, são muito caros.
Portanto, todo esse trabalho tem de ser feito. E também propomos que a Universidade das Índias Ocidentais – que é uma universidade caribenha de propriedade de todos os Estados-membros da Caricom – abra um campus no Haiti. Porque é um direito, pertence aos Estados, e isso facilitaria muito a redução do déficit que temos no nível de ensino superior. Todos os anos temos 70 mil estudantes prontos para ingressar na universidade pública, e a universidade tem capacidade para acomodar apenas 1,5 mil. Então é um déficit muito grande e isso explica também a migração de jovens para estudar. Por exemplo, há mais de 60 mil estudantes haitianos em Santiago, na República Dominicana. Então isso desestrutura um pouco a possibilidade de reprodução de mão de obra qualificada. São elementos importantes, mas para conseguir isso teríamos que ter um Estado com outra leitura, um Estado que realmente tenha um projeto de construção nacional, uma visão totalmente diferente.
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Também acreditamos que deveríamos desenvolver uma diplomacia cidadã agressiva para ligar o Haiti à luta dos povos dos afrodescendentes na América do Norte e em todo o continente. Os afrodescendentes, como é sabido, fazem parte da população mais pobre e mais marginalizada, junto com os indígenas. E acredito que o símbolo da luta antiescravagista e anticolonial haitiana poderia ser o investimento nas lutas atuais para alcançar os direitos fundamentais dos povos afrodescendentes. Nos Estados Unidos, vocês conhecem a luta permanente que existe, mas que se intensificou muito após o assassinato de George Floyd. E o Haiti desempenhou um papel muito importante no que chamaram, na década de 1940, de Renascimento do Harlem e tudo mais. Havia uma ligação, ainda mais forte do que agora, entre os militantes norte-americanos e a população haitiana. E os setores progressistas dos Estados Unidos desempenharam um papel fundamental na luta contra a ocupação norte-americana no Haiti. A saída das tropas norte-americanas em 1934 também se deveu muito à militância, às pressões dos grupos progressistas nos Estados Unidos. Um jornal de esquerda como o La Nación, dos Estados Unidos, fez uma campanha mostrando todos os abusos e massacres cometidos pelos soldados norte-americanos no Haiti. Então, para nós, é um vínculo importante para realmente atualizar a contribuição do Haiti nas lutas de emancipação na esfera continental, sobretudo. Vocês conhecem a história de Bolívar, que veio para o Haiti e ficou três meses aqui, em um momento em que estava completamente derrotado militarmente. Ele saiu daqui com armas, munições, navios e soldados, e escreve nas suas memórias que, sem a presença dos 350 soldados haitianos, teria sido impossível derrotar a Espanha. Então foi uma contribuição muito importante e, infelizmente, isso não é mencionado nas comemorações dos 200 anos de independência da América Latina. Então é preciso recuperar isso.
O mais trágico é que a maioria das nações latino-americanas também contribuiu para isolar o Haiti, porque não concordava com a revolução social que ocorreu aqui. No Brasil, por exemplo, houve um anti-haitianismo que apresentou a Revolução Haitiana como uma revolução sangrenta, bárbara, que não deveria se repetir no Brasil. Assim, manter os escravos como escravos até finais do século 19 contribuiu para o isolamento do Haiti. E acho que isso precisa ser revisto hoje. Reconhecer o Haiti, reconhecer a importância das contribuições históricas do Haiti é hoje essencial no trabalho de interligação das lutas setoriais. Porque uma das vitórias do imperialismo hoje é que, apesar do dinamismo das lutas que temos agora, e temos muitas, elas são fragmentadas.
Uma das coisas importantes que Dessalines fez na sua proclamação da independência do Haiti, por exemplo, foi revogar o nome “Saint-Domingue”, com que a França tinha batizado o Haiti, e recuperar o nome indígena. E chamou “Haiti”, que é um nome Taíno, afirmando a necessária conexão entre os povos afrodescendentes e os povos indígenas da América Latina. É uma conexão essencial para podermos avançar hoje em direção a um projeto revolucionário.
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Na sua opinião, qual balanço das ações da Minustah [Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, comandada pelo Brasil entre 2005 e 2017] no Haiti? Quais as expectativas em relação à política externa brasileira do governo Lula daqui para frente?
Trágico, trágico, isto é, terrível. O balanço da Minustah no Haiti foi catastrófico para o povo haitiano. Contribuiu muito para enfraquecer o Estado. Contribuiu para aumentar a dependência frente aos Estados Unidos. E gerou uma aliança estratégica com a extrema direita. Realizamos três eventos, um em 2018, um no seminário internacional em 2019 contra os crimes da Minustah no Haiti, e um tribunal popular sobre o crime da cólera em 2020. Queremos realizar o quarto evento em dezembro deste ano. Estamos priorizando dois tipos de vítimas – há mais, mas privilegiamos dois tipos. Primeiro, as mulheres estupradas, as crianças órfãs, porque muitos dos soldados partiram sem deixar endereço, e a cólera.
Acreditamos que é muito importante que haja uma indenização e reparação exemplares para o crime da cólera, uma doença que não existia no Haiti e que foi introduzida pelas tropas das Nações Unidas em condições de negligência inaceitáveis. Quando as tropas nepalesas chegaram ao Haiti para permanecer 18 meses, estava havendo uma epidemia de cólera no Nepal. Portanto, a diretoria da Minustah não tinha desculpa para não fazer exames médicos para averiguar o estado de saúde dessas pessoas. É realmente um crime inacreditável e que foi encoberto. Durante mais de três anos, as Nações Unidas tentaram esconder que eram responsáveis pela introdução da cólera. Usaram até especialistas da OMS, a Organização Mundial de Saúde, que vieram aqui dizer que: “Sim, é o ambiente depois do terremoto o que explica a cólera”, para desvincular a cólera da chegada dessas tropas. Mas depois, claro, felizmente, houve investigações de universidades norte-americanas, e de uma universidade na Suíça e outra na França, que mostraram que [a doença] veio do Nepal, o que é muito evidente.
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Depois disso foram feitos alguns projetos, mas nada realmente para compensar as famílias dos 40 mil mortos. Oficialmente dizem que são 10 mil, mas todos os especialistas dizem que são pelo menos 40 mil mortos, porque muitas das comunidades afetadas tinham que caminhar sete horas para chegar a um ponto de reidratação e sete horas é muito, você morre se está com cólera. Ou seja, muitas pessoas morreram sem chegar ao hospital e não foram registradas. São 40 mil mortos e 800 mil infectados, além de danos muito significativos para a economia. Por exemplo, a produção de arroz entrou em colapso, porque muitos agricultores que viajam todos os anos para trabalhar na produção de arroz não queriam ir e pôr os pés na água em um local onde havia cólera. Assim, a produção de arroz despencou e durante mais de dois anos a República Dominicana proibiu a importação de produtos agrícolas do Haiti, sob o pretexto de que estavam contaminados com cólera. Portanto, são danos econômicos realmente importantes que devem ser reparados.
Dizemos isso até pela credibilidade das Nações Unidas. Se eles mandam uma força de estabilização que produz isso, não podem continuar falando das Nações Unidas como um espaço de luta pelos direitos humanos. Portanto, acho importante que o governo brasileiro tire suas conclusões sobre esse balanço e participe exigindo que haja uma avaliação independente em nível mundial do trabalho da Minustah, e que entre em novas modalidades de cooperação com o Haiti. Isso me parece muito importante e acredito que é algo que o governo Lula pode fazer, e também temos muita esperança de que uma nova linha de cooperação seja definida. Inclusive, saindo da dependência dos Estados Unidos, da França e dos imperialistas, nos parece importante para o Haiti gerar um vínculo com a dinâmica do Brics e com toda a nova dinâmica de integração soberana latino-americana.
Sobre uma possível nova intervenção militar no país, quais as expectativas?
Está prevista para o dia 15 de setembro uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas para adotar uma resolução que autoriza o envio – e isso é muito estranho – de uma “força não ONUsiana”. Acho que é até pior, porque, pelo menos, com as Nações Unidas existe uma estrutura jurídica conhecida. É possível recorrer a isso. Mas uma força não ONUsiana eu não sei o que faz. Não é uma coisa. Uma das hipóteses que temos é que provavelmente vão instrumentalizar as tropas da África, como fizeram com a Minustah, mas talvez utilizem também empresas privadas
Ou mercenários?
Sim, mercenários. Tudo isso pode ter consequências negativas para o povo haitiano. Portanto, somos totalmente contra. Vamos enviar cartas ao presidente do Conselho de Segurança, aos países presentes etc. Vamos continuar enviando. Já mandamos uma carta para a Rússia e para União Africana.
Nos últimos dois anos, enviamos cerca de cinco cartas à China para explicar a situação, a nossa posição etc. Enviamos uma carta à União Africana para dizer que o Quênia não deveria se associar a essa aventura imperialista. Então eu não sei, não dá para prever o que vai acontecer. Não sei se a Rússia e a China vão vetar ou não. É muito difícil. Provavelmente vão negociar o Haiti com outra pauta, como sempre acontece, né?
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Mas faremos todo o possível para projetar a voz do povo haitiano, que não quer uma nova intervenção militar. Acreditamos que existe uma forma de acabar com a insegurança gerada pelas gangues através do controle do tráfico de armas. Sabemos de onde vêm todas essas armas. Eles vêm dos Estados Unidos e da fronteira; e não é tão difícil, com os meios tecnológicos que existem hoje, controlar o fluxo de armas e munições.
Em segundo lugar, defendemos que o cerne dessa questão é político. Em outras palavras, é preciso romper a aliança que existe entre os responsáveis pelo governo haitiano e as gangues. É o elemento básico que mantém a insegurança e o porquê de essas gangues se beneficiarem do apoio do Estado: impunidade total e oferta de armas e munições.
Acreditamos também que a polícia está muito enfraquecida. A polícia precisa de apoio técnico, apoio em armamento, apoio em tudo relacionado ao controle territorial etc. E há políciais não corruptos em número suficiente para realmente conseguir construir uma aliança entre a polícia e a população para se defenderem e vencerem esse fenômeno de insegurança.
Um dos objetivos dessa ocupação militar é humilhar novamente o Haiti. Mostrar que a solução sempre vem de fora. “Vocês não podem se governar, porque são negros. Vocês pensaram que poderiam ter um Estado, mas não podem”. É o objetivo ideológico mais importante que estão definindo. E é também uma questão de dinheiro, porque dizem que há 400 milhões de dólares disponíveis para essa intervenção e eles vão lutar para ver quem fica com o maior pedaço do bolo.
Já apontei a participação de Augusto Heleno Ribeiro na tentativa de golpe de janeiro de 2023, o que mostra muito bem a característica da força militar que tivemos no Haiti. Alguns militares até disseram que o trabalho das tropas brasileiras no Haiti foi um treinamento para reforçar a repressão e o controle das favelas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Portanto, espero que o atual governo brasileiro compreenda essa questão e permita o desenvolvimento de uma nova cooperação que realmente leve em consideração os interesses e a vontade do povo do Haiti.
Edição: Thalita Pires