Divergências limitam aproximação entre América Latina e Europa, avaliam analistas – CartaCapital

Divergências limitam aproximação entre América Latina e Europa, avaliam analistas – CartaCapital

Os 60 países da América Latina e da União Europeia se reúnem em Bruxelas nos dias 17 e 18 para retomar uma relação paralisada depois de oito anos, mas a terceira reunião de líderes pode terminar com divergências. Uma limitada declaração final tem sido negociada depois que os latino-americanos e caribenhos descartaram um apoio à Ucrânia. A institucionalização das relações e encontros a cada dois anos podem ser a conclusão de uma reunião com muita expectativa e poucos resultados concretos.

A invasão russa na Ucrânia revelou a vulnerável dependência dos europeus em relação à Rússia, levando a União Europeia a acelerar processos de inserção internacional em regiões onde tinha perdido terreno e a renovar o interesse em estabelecer uma nova agenda com a América Latina, baseada na transição ecológica, energética e digital, no contexto de mudanças climáticas.

A União Europeia procura diversificar cadeias de valor e reduzir dependências, a partir de parceiros confiáveis, com os quais têm uma relação tradicional e histórica. Para isso, oferece o “Global Gateway”, um plano de investimentos verdes (energias renováveis, hidrogênio verde, lítio para novas tecnologias).

Pelo lado da América Latina, a Europa pode ser um parceiro estratégico para a industrialização de matérias-primas, acrescendo valor às exportações e gerando empregos. Os principais países da região querem investimentos com transferência de tecnologia.

Essa seria a integração perfeita de complementaridades, mas as coisas não são tão simples assim. A terceira reunião entre a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e a União Europeia pode não atender toda a expectativa que cada lado tem.

“Os europeus estão dispostos a investir se houver reciprocidade de outras áreas, como em defesa. Ou seja: investem em energias verdes, mas querem contratos relevantes”, indica à RFI o analista internacional argentino Sergio Berensztein, de constante diálogo com negociadores dos dois lados.

“Falei com integrantes da Comissão Europeia. Referem-se à segurança alimentar e à segurança energética, mas quando dizem que não querem depender da Rússia, significa que querem produzir na Europa, não passar a depender de outro país ou de outra região”, acrescenta, em sintonia, com o cientista político argentino Andrés Malamud, da Universidade de Lisboa.

Divergências

É latente o risco de a reunião terminar sem uma declaração conjunta ou com um texto superficial, com conceitos vagos. Nesta sexta-feira (14), diplomatas ainda tentam uma declaração limitada a temas como meio ambiente e alterações climáticas.

“Sou bastante cética quanto ao resultado dessa cúpula. Deveríamos procurar pontos de encontro básicos para um plano de ação concreto. Temos muitos interesses comuns e complementares, mas temo que prevaleçam os contraditórios”, adverte à RFI a diretora do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Concepción, no Chile, Paulina Astroza, para quem três assuntos em comum deveriam ser “mudanças climáticas, transição ecológica (hidrogênio verde e lítio) e segurança”.

“Sobre o lítio, 60% da produção mundial está na Argentina, no Chile e na Bolívia. Quanto à segurança, a América Latina tem vivido uma realidade de violência, de tráfico de pessoas, crime organizado, de tráfico de drogas, e isso se une a pressões migratórias. A insegurança tem alimentado populismos de extrema direita”, observa. “A Europa deveria pensar que a estabilidade da América Latina é a sua própria estabilidade, porque a droga produzida aqui é consumida lá”, ilustra.

Reuniões frequentes

A conclusão da reunião pode ser apenas estabelecer um roteiro para a institucionalização da relação entre as duas regiões e o compromisso de reuniões mais frequentes a partir de agora, a cada dois anos, por exemplo.

Os avanços concretos devem passar pelas reuniões bilaterais entre países ou entre a União Europeia e determinados países. Um exemplo é a modernização do acordo comercial da União Europeia com o Chile e com o México, a ponto de serem assinados.

“A Celac não tem entidade jurídica para assinar nenhum acordo”, ressalta Andrés Malamud.

Celac, um foro heterogêneo

A Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos não é um bloco econômico, não é um organismo e nem mesmo um processo de integração em curso. É um foro que esboça a pretensão de uma agenda de cooperação, mas sem ações concretas.

Na Celac, convivem países de forte institucionalidade com países institucionalmente falidos. Países governados por regimes autoritários, sem alternância política.

Basta que um país se oponha para que um ponto não seja incluído numa declaração. E os pontos não passam de generalidades, sem nenhum compromisso executivo.

Em janeiro passado, na mais recente reunião da Celac, a comunidade se referiu a eleições democráticas, mas não descreveu que seja necessário um sistema plural de partidos com representação de vários setores da sociedade, com transparência eleitoral, nem que haja independência dos poderes – o que comprometeria os regimes de Cuba, Venezuela e Nicarágua.

“São valores comuns o que defendemos? Na América Latina, temos a mesma ideia ou a mesma interpretação do que é democracia, Estado de direito e direitos humanos”, indaga Paulina Astroza, lembrando que a Europa também tem membros cujas normas atentam contra o Direito europeu de independência e de separação de poderes, especificamente Polônia e Hungria.

América Latina difusa

O conceito de América Latina é difuso. A região não é um bloco coeso e não tem um mecanismo único de integração. São realidades diferentes a da América Central e a da América do Sul. Por outro lado, o Caribe é outra região que está exigindo que os europeus paguem compensações pelo período de escravidão.

“A América Latina é um território hiperfragmentado, com países mais abertos e outros mais fechados, com países cegos pela ideologia e com outros pragmáticos”, aponta Berensztein.

“Existem duas Américas Latinas: a do Norte engloba o México, a América Central e dois países da América do Sul, Colômbia e Venezuela. Todos esses países estão mais próximos da órbita dos Estados Unidos. O resto da América do Sul, do ponto de vista comercial, está mais próximo da China do que dos Estados Unidos”, interpreta Malamud. “O principal sócio do Brasil é a China. O principal sócio do México são os Estados Unidos. Brasil e México são os representantes dessas duas sub-regiões.”

O único aspecto comum a todos os latino-americanos é a desigualdade social. “Sem um denominador nem um horizonte em comum, é difícil que possa haver uma negociação comum entre as duas regiões, América Latina e Europa”, observa Sergio Berensztein.

Acordo Mercosul-União Europeia

Diante da dificuldade de uma agenda em comum, a reunião será uma excelente oportunidade para reuniões bilaterais. Em paralelo, Luiz Inácio Lula da Silva, como presidente do Mercosul, terá um encontro com a presidente da União Europeia, Ursula von der Leyen.

O acordo comercial entre os dois blocos é estratégico para ambos, mas os europeus acrescentaram exigências ambientais que os sul-americanos rejeitam. O Brasil ficou de coordenar com os parceiros do Mercosul uma contraproposta à Europa. Existe a expectativa de que essa resposta seja entregue durante a reunião, mas as chances de um avanço palpável são escassas.

A presidência espanhola do Conselho da União Europeia, iniciada em 1º de julho, começou dispersa. No dia 23, cinco dias após a cúpula, a Espanha vai às urnas para eleições gerais. A diplomacia espanhola está à espera de um governo.

“Espanha e Portugal são os mais interessados no acordo com o Mercosul, mas não têm muita influência sobre o resto. Para a Europa do Norte e Oriental, a América Latina é marginal. Os países vizinhos da Rússia só querem que tudo seja anti-Rússia e o Mercosul não é anti-Rússia. Para a protecionista França, o acordo é uma ameaça”, sintetiza Andrés Malamud.

Decepção com Lula

Para o Brasil, a reunião da Celac é muito importante. Num mundo bipolar entre Estados Unidos e China, o Brasil entende que, para ter peso no cenário global, precisa representar a sua região, a América do Sul, e formar um eixo integrado com a União Europeia.

Mas a União Europeia mantém uma decepção com o presidente Lula, a partir de duas questões: a posição em relação à guerra na Ucrânia, que coloca agressor e agredido em pé de igualdade, e a complacência com a Venezuela, a partir da defesa enfática de Nicolás Maduro.

Mesmo assim, o analista Andrés Malamud vê Lula como o protagonista natural por parte da América Latina. “Há uma decepção parcial com Lula, mas, ao mesmo tempo, uma insistência em querer acreditar em Lula. O trauma com Bolsonaro foi tão forte que perdoam tudo de Lula. Não gostam do que Lula faz, mas consideram que é melhor alternativa”, compara.

Sergio Berensztein concorda: “O protagonista natural será Lula, apesar da decepção com ele”.

Deficiência democrática

A América Latina convive com um déficit em matéria de democracia e de direitos humanos, gerando uma tensa convivência entre países com bases republicanas e países disfarçados de democracia. É na Celac que os regimes autoritários da América Latina encontram a sua vitrine internacional.

A comunidade foi criada por impulso da Venezuela e de Cuba em oposição à Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual Cuba não participa e onde os Estados Unidos exercem forte influência.

Nesse aspecto, todos os olhos apontam na direção de Cuba, Nicarágua e Venezuela, mas também é preciso prestar atenção em estados semifalidos da América Central, como Guatemala, El Salvador e Honduras, os países do chamado Triângulo do Norte, onde os opositores também têm sido banidos da disputa eleitoral.

“Venezuela, Nicarágua e Cuba não são democracias. El Salvador e Guatemala estão deixando de ser. Mas se a Europa fizesse a seleção que os Estados Unidos fizeram na última Cúpula das Américas, faltariam vários presidentes, incluindo o México”, avalia Malamud.

Guatemala e El Salvador são governados pela direita, indicando que os populismos autoritários na região não são apenas da esquerda.

E se faltava alguma dúvida sobre a ausência de condenações à Venezuela, mesmo depois da exclusão da candidata opositora María Corina Machado, a liderança da Celac está nas mãos do primeiro-ministro da pequena ilha de São Vicente e Granadinas, Ralph Gonsalves, um aliado do venezuelano Nicolás Maduro.

“O objetivo da União Europeia é usar a integração como instrumento de negociação com esses regimes. Ao manter o vínculo diplomático, pressiona-se através da integração, sentando os rebeldes à mesa de negociação”, afirma Berensztein.

Questão Ucrânia

A reunião acontece depois de anos de forte presença da China na América Latina, mas também da sua associada Rússia em alguns Estados como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Bolívia em maior medida, mas também no Brasil, México e na Argentina, as três maiores economias. Nos últimos 20 anos, a prioridade geopolítica da Europa passou por outras regiões.

“A União Europeia deixou espaços de influência na América Latina que outros atores aproveitaram, especialmente a China. A Europa passou a um terceiro plano, depois da China e dos Estados Unidos”, aponta Berensztein.

Isso explica, em parte, a negativa desses países em aceitar a presença em Bruxelas do presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky. Esse é um ponto central para a União Europeia, mas a América Latina entende que essa guerra não lhe pertence, que é um problema europeu e se mantém numa suposta neutralidade ou prioriza os vínculos econômicos e políticos com a Rússia.

É possível que se declarem a favor de “uma saída política e diplomática” para a guerra, mas vão preferir usar o termo “conflito” e não vão condenar a Rússia, nem apoiar a Ucrânia.

E essa é parte da decepção da Europa com a liderança que Lula poderia exercer na sua região. “Ursula von der Leyen disse no Chile que Lula foi o presidente mais duro dos quatro que visitou (Brasil, Argentina, Chile e México). Eu falei com os europeus quando vieram aqui ao Chile. Estavam muito zangados pela forma como Lula colocou o assunto”, revela Paulina Astroza.

De qualquer forma, será curioso ver a Argentina pressionar por um parágrafo que reforce os seus direitos sobre as Ilhas Malvinas, baseado no princípio de territorialidade, enquanto se nega a incluir um parágrafo, pelo mesmo princípio, a favor da Ucrânia.

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