11 de março de 2023
Obrigatório desde 2009, o Ensino Médio vem apresentando uma espécie de “crise de identidade” há algumas décadas. Frutos de uma grande disputa de concepções, as políticas educacionais implementadas neste século expressam grande heterogeneidade de definições quanto à função da escola, de modo geral, e do próprio Ensino Médio em particular. Como espaço privilegiado de disputa ideológica para a formação da classe trabalhadora, esta “crise de identidade” corresponde a uma luta mais ampla por hegemonia nos rumos da educação básica que ganha corpo, em especial, durante o segundo Governo Lula. Isto é, no momento em que a construção das políticas educacionais, no seio do Ministério da Educação, recebe crescente influência de importantes setores privados – tais como o Itaú (Fundação Unibanco), Bradesco, Santander, Gerdau, Natura, Volkswagen, Fundação Roberto Marinho, Fundação Lemman, Todos pela Educação, etc.
As políticas que se desdobram desta influência se alinham à chamada Pedagogia das Competências, construída com base em um projeto educacional levado a cabo por organismos internacionais desde a década de 1990, cristalizado na Declaração Mundial sobre Educação para Todos – expressão que, no Brasil, inspira o Movimento Todos pela Educação que atualmente se encontra dentro do MEC representado pela atual Secretária-Executiva, Izolda Cela. As bandeiras destes organismos financeiros internacionais para a educação na América Latina envolviam a formação de profissionais “flexíveis, polivalentes e multifuncionais”, isto é, de uma força de trabalho com baixa qualificação, reduzidos direitos trabalhistas e alta carga de trabalho, destinada em especial ao setor de serviços.
Desse modo, a crise na educação brasileira não é mero resultado de má gestão de Temer ou de Bolsonaro. A catastrófica redução do investimento na educação pública e o cada vez maior fortalecimento do setor privado de educação são também consequências de um momento da economia brasileira em que, a partir do segundo Governo Dilma, a economia das commodities chega ao seu limite e, com ela, a falência da política de transferência de renda e da social-democracia. Assim, a política de austeridade que se desenvolve a partir de 2015 é acompanhada de um processo brutal de desindustrialização no país. A mão de obra especializada não é mais necessária, e em seu lugar recebe intenso fomento a formação de força de trabalho barata para o atendimento do terceiro setor.
Nesta esteira, a Contrarreforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) passa a ser desenvolvida ainda durante o primeiro Governo Dilma através do Projeto de Lei nº 6.840/2013, de autoria do Deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), construído com a colaboração de setores privados e sem a participação dos movimentos sociais. Esta iniciativa, resgatada pela Medida Provisória nº 746/2016 do golpista Michel Temer, respondia à necessidade de superar aquela chamada “crise do Ensino Médio”, apresentando propostas conservadoras que viriam a materializar, não uma Reforma, mas um processo profundamente contrarreformador, aprofundando as características educacionais que melhor correspondem à fase de acumulação flexível do capitalismo: a aprendizagem flexível.
As demandas correspondentes à infraestrutura escolar, ao exercício do trabalho docente em condições dignas, das políticas de acesso e permanência na educação básica e mesmo da identificação das juventudes frente à escola são agravadas substancialmente. A crescente precarização das condições de trabalho entre as e os jovens trabalhadores se soma à intensa carga letiva, à diminuição do acesso à educação noturna e à Educação de Jovens e Adultos, assim como ao crescente impulso à Educação a Distância, inclusive no próprio Ensino Médio. O largo processo de desinvestimento na educação pública agrava as já debilitadas condições de assistência estudantil na Educação Básica e Técnica, que não conta com recursos próprios, a exemplo do PNAES.
No que toca à docência, além de tornar ainda mais aguda a sobrecarga de trabalho e o recorrente desvio de função, a Contrarreforma do Ensino Médio promove um potente desmonte dos cursos de licenciaturas, obrigados a se adaptar à Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, desprezando a pesquisa como parte fundamental do trabalho docente. De outra mão, desvaloriza a formação de profissionais das Ciências Sociais e Humanas, cujas disciplinas se reduzem no currículo básico de tal sorte que, formados, estes professores são deslocados para lecionar “Projeto de Vida” ou outras matérias que zombam da formação científica de qualquer educador, além de intensificar o processo de MEIficação dos profissionais.
Os Itinerários Formativos, uma vez escolhidos, não podem ser alterados pelos secundaristas durante todo o percurso, tolhendo o direito de acesso a amplas áreas do conhecimento e obstruindo a obrigatoriedade legal de universalização do Ensino Médio. Agrava-se, desse modo, a dualidade do sistema educacional brasileiro, em que a classe dominante possui uma educação completa enquanto, para as e os trabalhadores, resta aprender a ler e escrever. A ampla oferta de Itinerários e disciplinas eletivas, de um farto quadro de profissionais e boa infraestrutura estará disponível apenas aos secundaristas cuja renda permitir. Para os mais empobrecidos, fica a obrigação de conciliar trabalho e estudo, a evasão como necessidade à sobrevivência, e o horizonte de expectativas reduzido à formação técnica e profissional. Aos ricos, a garantia da educação integral do sujeito humano; aos pobres, a sobrecarga da formação em tempo integral, mas unilateral.
O resgate deste modelo educacional experimentado durante a ditadura civil-militar contribui, não por acaso, para a significativa desmobilização do movimento estudantil secundarista. Em que pese a realização histórica do movimento de ocupações de escolas, Institutos Federais e universidades entre os anos de 2016 e 2017, ao fim e ao cabo, não foi possível reverter a consolidação das políticas educacionais ultraliberais em processo de aprovação naquele período. A crise de representatividade e legitimidade vivida pelas entidades estudantis, destacadamente a própria União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), oriunda, em alguma medida, da quase indistinção entre nossas entidades de luta e os governos presididos pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – e, portanto, da falta de independência de classe destas entidades -, fora obstáculo fundamental à garantia de uma clara direção política para as ocupações.
Embora parte das justificativas oficiais da Contrarreforma do Ensino Médio se ancorem sobre a superação da chatice das disciplinas tradicionais, fato é que as novas disciplinas agudizam ainda mais a desidentificação das juventudes frente à escola. Se estudantes e trabalhadores da educação não partilham um lugar comum de identificação com a escola, será também difícil identificar-se com a luta em sua defesa. Nesse contexto, a vacilação das entidades estudantis, bem como do próprio Ministério da Educação recém empossado frente à revogação não apenas do Novo Ensino Médio, mas do conjunto de políticas que cristalizam a Contrarreforma, contribuem para a desarticulação da auto-organização de um setor estratégico da juventude trabalhadora.
Revogar o Novo Ensino Médio é parte fundamental de uma luta mais ampla que deve envolver frear a Contrarreforma Curricular nas Licenciaturas (Resolução CNE/CP 02/2019, a desarticulação do projeto de um novo ENEM e a firme defesa do ingresso em Instituições Superiores via SISU, no rumo da universalização do acesso às universidades, sem processos seletivos. A luta contra a Contrarreforma do Ensino Médio passa por derrotar a tentativa de ampliação da oferta de Educação a Distância em cursos presenciais, bem como das parcerias público-privadas impulsionadas pela Lei nº 13.415/2017.
Para emplacar as conquistas que serão pedra angular, no próximo período, da efetiva transformação das condições de vida da juventude trabalhadora e do conjunto de nossa classe, será preciso ampliar vigorosamente as mobilizações de massas. Reivindicamos não apenas a revogação do NEM, mas da própria Contrarreforma, entendida como complexo de políticas educacionais fundamentadas sobre o mesmo objetivo de embrutecer as juventudes e forjar gerações de trabalhadoras e trabalhadores ainda mais precarizados e superexplorados.
O quase completo fim de disciplinas potencialmente críticas, a exaustão de trabalho e estudo, a falta de infraestrutura e de assistência estudantil, acompanhadas de um duro processo de adoecimento psíquico entre estudantes e profissionais, serão fórmula para o enfraquecimento e imobilização do movimento estudantil secundarista e do movimento sindical da educação básica. Para reverter este quadro, é igualmente fundamental a revogação do Teto de Gastos, das Contrarreformas Trabalhista e da Previdência, bem como a paralisação da Contrarreforma Administrativa. Do mesmo modo, reiteramos nosso profundo compromisso com a luta pela jornada de 30h semanais, na defesa intransigente de condições dignas de vida, trabalho e estudo para o conjunto da classe trabalhadora.
Nesse sentido, o antigo Ensino Médio também não nos serve. O sistema educacional brasileiro precisa de mudanças que caminhem no sentido de construção de uma educação popular. A escola deve ser um espaço de produção de conhecimento e de cooperação da classe, deve formar as e os trabalhadores enquanto sujeitos totais, de modo omnilateral e politécnico, no rumo da emancipação humana. Esses princípios, aliados a uma escola que avance como referência dentro do bairro em que está localizada, são centrais para a rearticulação da organização da classe trabalhadora e o avanço de suas lutas.
- Pela revogação imediata de todas as Contrarreformas!
- Pela implementação de um Plano Nacional de Assistência Estudantil para a Educação Básica e Técnica!
- Contra a Contrarreforma Curricular nas Licenciaturas!
- Em defesa da jornada de trabalho de 30h semanais! Contra a sobrecarga docente!
- Por uma Escola Popular!