Aline Vessoni
Nestes tempos de diversões digitais disponíveis sem limitações de tempo ou de espaço, os amantes e adeptos do circo procuram novas formas de articulação e de cooperação, a fim de assegurarem a continuidade desta que é uma das mais ameaçadas dentre as artes cênicas. Uma dessas novas articulações atende pelo nome de Cartografia Iberoamericana de Circo, uma ação de mapeamento das práticas circenses da América Latina, Portugal e Espanha, conduzida por profissionais da área situados no Canadá e ligados ao Mercado Internacional de Circo Contemporâneo (MICC). Este ano, a Cartografia Iberoamericana passou a registrar também as atividades de um grupo de circo ligado à Unesp, o CircUnesp. Trata-se da quinta escola brasileira a integrar a lista.
Os responsáveis pelo projeto CircUnesp, o professor do departamento de Educação Física do Instituto de Biociências, Flávio Soares, e seu orientando, o estudante de graduação William Olielo, explicam a importância da inclusão do grupo na lista. “Ela traz visibilidade para a Unesp, mas também para outros projetos brasileiros, diz Olielo. “Também abre portas para intercâmbios entre escolas, e entre países. A Unesp passa a ser um espaço aberto para outros circos e vice-versa.”
O circo chegou ao campus de Rio Claro, em 2021, quando Olielo deu início à graduação de Educação Física. Ele, por sua vez, só chegou à Educação Física graças ao circo – atividade que pratica desde a infância. Logo nas primeiras aulas como estudante de graduação, pensou que seria possível desenvolver atividades circenses como parte das disciplinas “Práticas corporais alternativas” e “Atividades expressivas rítmicas e danças”, ministradas por Flávio Soares. Para o aluno, estes conteúdos tinham o mérito de procurar extrapolar a vinculação direta com o corpo físico e trazer o aluno para a percepção do corpo, do momento presente, da atenção plena “que foge um pouco do tecnicismo do que é a educação física e do que pode ser o circo”, explica o aluno.
Apresentação do CIRCUNESP no Festival UNESP Arte e Expressão “Cátia Mary Volp” 2022. Crédito: acervo pessoal.
Olielo conta que as escolas tradicionais de circo trabalham a formação do aluno dando ênfase ao aspecto técnico, trabalhado pela repetição. Ele, inclusive, aprendeu por este modelo. Mas, para o projeto do CircUnesp, Olielo agregou o conhecimento prévio com o que aprendeu nas aulas de Soares, e o resultado é uma abordagem mais lúdica. Por exemplo, em vez de dar bolinhas e ensinar malabarismo pelas vias de praxe, ele apostou em jogos como a queimada e pedia que, enquanto o aluno analisava quem iria “queimar”, ficasse jogando a bolinha de uma mão para outra. O resultado foi surpreendente e, em menos de três meses, todos estavam praticando malabarismo. “Desenvolvem-se habilidades sem dar nome às coisas, às ações. Ao nomear, a tendência é inibir o aprendizado. Dessa forma, vamos além da dimensão performativa que é o saber fazer pura e simplesmente”, elucida Soares.
Soares diz que foram dois os elementos que permitiram estruturar o CircUnesp . Primeiro, a abertura da Unesp para escutar percepções e anseios da comunidade externa. Em segundo lugar, as possibilidades de que a universidade dispõe para atender demandas da comunidade interna, através de ferramentas como o edital Unesp Presente, que incentiva os alunos a participarem de atividades acadêmicas extracurriculares.
Em 2022, o edital Unesp Presente tinha o objetivo de reduzir o impacto da pandemia da Covid-19. No texto do documento, a Alínea C, de ação cultural, encaixava-se com a proposta das atividades de circo. “Estudantes com esse know-how podem receber bolsas de auxílio, a fim de implementar essas iniciativas dentro da universidade. E isso dialoga com a atual política de extensão universitária, que não tem mais um caráter assistencialista”, diz Soares.
Em 2022, as aulas aconteceram às segundas das 18h às 19h e reuniam estudantes de cursos diversos do campus. O desenvolvimento dos participantes caminhou para a formação de uma trupe, que atualmente se apresenta fora do ambiente universitário. Afinal, como enfatiza Olielo, “o circo se realiza verdadeiramente quando há público”.
Olielo e Soares estão confiantes na possibilidade de expandir o quadro de aulas e agregar outras modalidades, ainda este ano. Os aparelhos aéreos já foram aprovados e têm previsão de serem entregues ainda no primeiro semestre.
O circo na Unesp: presença desde os anos 1980
Enquanto no campus da Unesp em Rio Claro as atividades circenses estão ligadas ao curso de Educação Física, em São Paulo elas se organizaram a partir do Instituto de Artes. Desde 2007, está instalada no local uma lona, empregada para diversas atividades e projetos circenses, e sua presença é o resultado do empenho e do amor ao picadeiro de Mario Bolognese, hoje professor aposentado do curso de Artes Cênicas.
Graduado em filosofia, Bolognese iniciou sua aproximação com o circo quando pesquisava a dramaturgia do russo Vladimir Maiakovski (1893 – 1930) no mestrado. Seu trabalho encontrou uma interface do poeta futurista com o circo, e abriu a senda para que Bolognese estudasse o mundo circense, incluindo o trapézio, o malabarismo e a arte clown, pois a dissertação também contaria com uma montagem. “Na época, em 1980, acabamos montando uma companhia, a Tenda, Tela, Teatro, que se apresentava em diversos bairros paulistanos e depois acabou se aventurando pelo Centro-Oeste”, lembra.
Em 1986, o Plano Cruzado, concebido pelo então ministro da Fazenda, Dilson Funaro, acabou levando o país a uma crise econômica vertiginosa. Isso prejudicou a cultura de modo geral. O circo, que já tinha poucos incentivos, acabou por se tornar uma atividade inviável. “Para você ter uma ideia, somente na cidade de São Paulo, havia uma média de 80 circos. Apenas quatro sobreviveram”, pontua.
O docente, que até então se dividia entre a trupe e as aulas na Unesp, desistiu do picadeiro e voltou integralmente para as salas de aula. Mas sem esquecer do circo, ele que havia dedicado boa parte de sua carreira circense ao trapézio e à palhaçaria, elaborou um projeto sobre os palhaços circenses, devido à proximidade dos palhaços com a linguagem teatral, o que resultou em sua livre-docência e no livro Palhaços, publicado pela editora Unesp.
Em 2007, com a verba de projeto custeado pelo CNPq, uma lona circense foi erguida na Barra Funda. “A verba só dava para comprar a lona. Então, eu levei para lá algumas cordas e trapézios meus. Depois, tivemos auxílio da Reitoria e recebemos também uma verba estadual para equipar com cama elástica, pernas de pau, malabares, sonorização e iluminação.”
No Circo da Barra, na Barra Funda, em São Paulo, as atividades circenses são abertas para a comunidade interna e externa. Crédito: acervo pessoal.
Para Bolognese, as atividades circenses no IA acabaram sendo “um espaço catalisador não só para a extensão, mas para a graduação, a pós-graduação e a pesquisa”. Depois que ele se aposentou, em 2017, o circo passou a ser gerido por outros professores e, no momento, está ao encargo da professora Marianna Monteiro.
Atualmente, a programação oficial das aulas – que são abertas à comunidade – acontecem às terças e quintas, das 14h às 17h e são geridas por quatro monitores, dentre os quais está Nathalia Stender, que já é bacharel em artes cênicas e atualmente estuda Licenciatura em Arte-Teatro.
Além dos treinos, o Circo da Barra presta outros serviços à comunidade, tais como as apresentações semestrais que são abertas ao público, bem como as oficinas que são levadas a escolas públicas parceiras. A lona também está à disposição de companhias que carecem de espaço para treinar. Para Nathalia, que começou a treinar em paralelo à graduação, o circo é capaz de trazer mais consciência corporal, de uma forma que o teatro não alcança. “Aprendi a ter cuidado com o meu corpo e com o de outras pessoas, porque em muitas ações lidamos com o outro e temos que cuidar do outro também. O circo também nos ensina paciência pra entender o limite do nosso corpo, não tem certo ou errado”, esclarece ela.
Em outra perspectiva, o circo tem um poder de encantamento potencializado, se comparado a outras artes cênicas, por conta do seu caráter de risco. Para Bolognese, isso se explica através do conceito do sublime, que originalmente era utilizado para refletir a relação de impotência que os seres humanos sentem diante dos fenômenos da natureza, como terremotos e inundações. Aos poucos, as artes e psicologia se apropriam dessas reflexões. “O público se sente impotente por não ser capaz de realizar a performance a que está assistindo, e isso gera ressentimento em relação ao artista. Ao mesmo tempo, a audiência sabe que quem está realizando o número também é um ser humano, e isso gera admiração “, relata o professor.
Soma-se a isso ter um espetáculo embasado na dubiedade: dividido entre o risco e a zombaria do palhaço, o que garante a eficácia do espetáculo. “Se o circo fosse apenas risco e tensão, como iria terminar? Com o trapezista no chão e morto. Nesse caso, extrapolaria a ordem do espetáculo e cairíamos na ordem da vida natural”, finaliza.
Créditos: Trupe formada no CircUnesp se apresenta no centro de Rio Claro. Crédito: acervo pessoal