Uma plataforma de jornalismo especializada em analisar e divulgar dados sobre gênero e raça. Desde 2016, a Gênero e Número tem ajudado a abrir caminhos para qualificar o debate sobre temas que afetam uma parcela considerável da população brasileira ignorada pelas leis, pelos políticos e, em diferentes medidas, pelo Judiciário e pela mídia.
Análises complexas feitas sobre realidades ainda pouco estudadas e radiografadas por pesquisas demográficas de grande porte, como o Censo, que não é feito desde 2010. Por exemplo, como a desinformação e a violência nas redes afetam a rotina de jornalistas mulheres? Qual a dimensão da violência eleitoral contra candidaturas de pessoas LGBTQIA+ e o que levou o preconceito a se tornar até mote de campanhas da extrema-direita?
Para encontrar respostas objetivas e fundamentar suas teses, a equipe da plataforma faz um trabalho minucioso de cruzamentos de dados e, na falta deles, também elabora estudos próprios. Uma abordagem que ganharia destaque a cada publicação e passaria a atrair cada vez mais parcerias com organizações da sociedade civil.
“Como outras organizações não têm costume ou equipe para esmiuçar bancos de dados, eles procuram a Gênero e Número para fazer essa análise e para distribuir os conteúdos, o que envolve reportagens, criação de sites e outros produtos. E também pela nossa direção de arte, que sempre fez um trabalho competente de produção de gráficos e infográficos”, explica Vitória Régia da Silva, editora-assistente da plataforma.
Fundada por três jornalistas – Giulliana Bianconi, Natália Mazotte e Maria Lutterbach – a Gênero e Número se inspirou, no início, em publicações especializadas em pautas feministas que começavam a surgir mundo afora. “Mas, com o tempo, a gente viu que não dava para falar sobre gênero no Brasil sem falar de raça. Pouco depois, a gente também expandiu a nossa cobertura para falar de diversidade sexual”, pontua Vitória.
De reportagens sobre grandes temas da atualidade, como as eleições, até pesquisas aprofundadas e ferramentas de busca que levam até um ano para ficarem prontas. São vários os desafios da Gênero e Número, cuja equipe tem se expandido para atender o fluxo e a complexidade dos novos projetos, e também conta com cientistas políticos, designers e até um especialista em ciências contábeis.
“Só nesse mês antes das eleições, a gente vai lançar o Mapa da Mulher Carioca em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, o Escolha a sua candidata’uma ferramenta que lançamos todos os anos para visibilizar as candidaturas femininas no país todo, que é atualizado simultaneamente com dados do TSE, vamos lançar um documentário sobre aborto na América Latina, fora a cobertura especial das eleições”, comenta Vitória Régia.
Além de projetos pontuais, o financiamento da plataforma é feito sobretudo por duas organizações filantrópicas internacionais, a Fundação Ford e a Open Society. Também contribuem regularmente o Instituto Ibirapitanga, do Instituto de Estudos da Religião, da ONU Mulheres, além de pequenas participações da Embaixada da Suécia no Brasil e de assinaturas via Catarse.
¡Ni una menos!
Um dos projetos especiais é o inédito documentário longa-metragem Verde-Esperanza: aborto legal na América Latina, que tem pré-estreia confirmada para 22 de setembro na capital carioca, onde fica o escritório da Gênero e Número. O tema central da obra é o processo de descriminalização do aborto na América Latina, que avançou consideravelmente em partes do subcontinente nos últimos anos, tendo Argentina e Colômbia como referências comparativas para a realidade brasileira.
“Fazemos paralelo com os avanços que aconteceram na Argentina, via Executivo, e depois na Colômbia pelo Legislativo e Corte Superior, localizando onde está o debate no Brasil hoje”, apresenta Maria Lutterbach, diretora e roteirista do filme, e uma das fundadoras da Gênero e Número.
A cineasta conta sobre a imersão da equipe nos países vizinhos em que foi possível capturar as discrepâncias em termos de conscientização e oferta de serviços públicos. Vinda de um processo de descriminalização mais recente, decidida pelo Tribunal Constitucional em fevereiro deste ano, a Colômbia ainda há certo desconforto de hospitais e profissionais da saúde em se verem associadas ao aborto.
“Já na Argentina, a gente já viu um cenário muito mais avançado. Conseguimos registrar dois procedimentos de pessoas sendo atendidas. É um direito bem consolidado e tudo é feito com uma dignidade impressionante”, comenta. Em 2020, o Congresso legalizou o aborto até a 14ª semana de gravidez, consolidando uma reivindicação de ativistas pró-aborto, que desde o início do século adotaram lenços verdes em manifestações de rua.
Apoiado em dados e estudos da Gênero e Número, o filme aborda o que existe de suporte para meninas, mulheres e pessoas capazes de gestar no Brasil, considerando a fragilidade do sistema público de saúde. Segundo Maria, a situação é agravada por resistências de médicos, enfermeiros e advogados que encampam o movimento antiaborto auto-intitulado “pró-vida”, como nos casos emblemáticos das meninas que foram constrangidas em hospitais públicos em Florianópolis, em junho, e no Espírito Santo, em 2020.
“A nossa causa conseguiu avançar nos últimos anos, apesar dessa investida conservadora que a gente está vivendo hoje, de uma ultra-direita presente não só no Executivo, mas também em outros poderes, no sistema de saúde público, em todas as instâncias”, observa Maria Lutterbach.
Por outro lado, há ações destacadas da sociedade organizada para oferecer amparo e assistência, especialmente às pessoas em situação de maior vulnerabilidade, que são as mais prejudicadas pelo desamparo do Estado. Dois exemplos são o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que atua em São Paulo desde 1985, e a organização Unidas pela Vida das Mulheres, do Rio, que ajuda a custear a viagem de pessoas que buscam o atendimento especializado e legal em países como a Colômbia, que não tem impedimento contra estrangeiros.
Parcerias ampliam o alcance das lutas
A Gênero e Número não defende nenhuma candidatura para as eleições deste ano, mas não esconde que luta por uma maior diversidade no Congresso Nacional. Em especial, candidatas do sexo feminino, ainda subrepresentadas na política, e de transexuais e travestis, marginalizadas em todas as esferas sociais, ainda mais nas de poder.
“As pessoas LGBTQIA+ ocupam só 0,16% dos cargos eletivos no Brasil, considerando todos os cargos, Executivo, Legislativo e em todos os níveis federativos”, salienta Evorah Cardoso, pesquisadora e articuladora da organização VoteLGBT. Mesmo assim, ela comemora a proliferação de candidaturas desse espectro e a possibilidade de conquistar assentos inéditos no Congresso Nacional.
Alguns dos projetos tocados desde as últimas eleições junto com organizações parceiras, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a própria VoteLGBT, buscam mapear essas candidaturas pelo país ou servir como canal de denúncia para casos de violência política e descriminação.
“O que descobrimos dos dados das eleições de 2020 é que cerca de ⅔ das candidaturas que conseguem se eleger ficam totalmente isoladas, territorialmente, são as únicas candidaturas diversas nos seus partidos e nas câmaras municipais ou legislativos estaduais. E esse isolamento leva à violência política, então é importante que elas não sejam as únicas, que surjam mais”, salienta Evorah.
A pesquisadora, que desde 2016 leva questionários para a Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo, acredita que a falta de informações cria um ambiente favorável aos grupos intolerantes. “O mais grave é que o projeto de poder atual, que é um projeto LGBTfóbico e transfóbico por natureza, faz uso do preconceito como marketing político-eleitoral. Ou seja, a transfobia e a LGBTfobia como base para a captação de votos para um projeto de poder baseado no ódio, na violência e descriminação”, protesta.
Esperança renovada
Acuado pelas pesquisas eleitorais que evidenciam a enorme rejeição do público feminino, o presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, tem martelado números que comprovariam a preocupação do seu governo com as mulheres. Uma manobra repleta de distorções e dados falsos, na avaliação de Vitória Régia.
“Nos últimos anos, o ministério da Damares Alves não gastou 1 real com a população LGBTQIA+ do país. Isso é muito sério, porque tinha dinheiro disponível para isso. Foi uma escolha político-ideológica fazer uso desse dinheiro para nada”, critica a jornalista. Ela também menciona as carências enfrentadas pelos centros de acolhimento, como o Centro da Mulher Brasileira, que não teve novas unidades construídas na atual gestão e a falta de repasse para as delegacias da mulher, “onde ainda falta treinamento e preparação”, aponta.
Se o Executivo e o Legislativo não ajudam, pouco a pouco alguns paradigmas e barreiras institucionais são colocados em xeque. Este ano, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publicou duas portarias: uma que institui a Comissão de Promoção da Participação Indígena no Processo Eleitoral e o Núcleo de Inclusão e Diversidade do TSE. De acordo com os textos, o objetivo é elaborar estudos e projetos para promover e ampliar a presença desses povos e populações nas diversas fases das eleições.
Um contexto que pode favorecer o fluxo de informações da Gênero e Número, já usadas para subsidiar projetos de políticas públicas e teses jurídicas. “Comparando com a última eleição, a gente já tem alguns canais institucionais que são importantes, mas que ainda não conseguiram dar conta da violência política contra eleitores e candidaturas. Mulheres negras, indígenas, pessoas trans e LGBTs ainda estão desamparadas pela Justiça e pelos partidos políticos. Acho que tem muita coisa ainda para avançar e fortalecer a democracia”, conclui Vitória Régia.
Edição: Rodrigo Durão Coelho