Autoritarismo versão millennial

Este conteúdo é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados em aquimandoyo.dromomania.com.

 

O Dicionário da Real Academia Espanhola ensina que o sufixo -ismo é usado para formar substantivos que geralmente significam doutrina, sistema, escola ou movimento. Vale para marxismo, comunismo, modernismo… O século passado foi pródigo na criação desses substantivos a partir de nomes de políticos, e no dicionário real constam castrismo, de Fidel Castro; peronismo, de Juan Domingo e Eva Perón; estalinismo, de Josef Stálin; e franquismo, de Francisco Franco. Muitas vezes palavras que terminam em ismo designam ideias autoritárias associadas a partidos políticos, candidatos e governantes presentes ou passados. A América Latina é pródiga em ismos, passados e presentes, de variadas nuances, passando pelo orteguismo do nicaraguense Daniel Ortega ao chavismo do venezuelano Hugo Chávez. Há exceções à esquerda, como o “mujiquismo” do uruguaio Pepe Mujica. Em El Salvador, a palavra da vez é “bukelismo”, por causa de Nayib Bukele, um presidente que em pouco mais de dois anos de mandato mostrou que tem muito de autoritário ao comandar esse pequeno país da América Central, geopoliticamente irrelevante.

O leitor brasileiro com mais de 40 anos se lembra de ouvir no noticiário sobre a guerra civil em El Salvador, encerrada graças a acordos assinados em 1992. A guerrilha da FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) converteu-se no partido homônimo e se consolidou como a força antagônica da direitista Aliança Republicana Nacionalista (Arena). Em todas as eleições presidenciais e legislativas realizadas entre 1994 e 2018, Arena e FMLN se revezaram como primeira e segunda forças, quase sempre a enorme distância das demais. Durante um quarto de século, o sistema político-partidário salvadorenho foi um dos mais estáveis da América Latina, ancorado na dupla Arena-FMLN. 

Isso até a irrupção de Bukele. 

Nas eleições presidenciais de 2019, o candidato de 37 anos conseguiu que 53% dos salvadorenhos votassem na Grande Aliança pela Unidade Nacional (Gana), um pequeno partido de direita que lhe permitiu registrar a candidatura no último minuto. Nas eleições legislativas de fevereiro de 2021, depois de 21 meses no poder, Bukele conseguiu que 66% do país votasse no Novas Ideias (NI), seu partido. Um tsunami ciano — o azul vibrante que identifica a agremiação — que reduziu a Arena a 12% das preferências e a FMLN a 7%. Algo inconcebível há menos de cinco anos.

 

Em Ciudad Arce, um próspero município do departamento de La Libertad localizado a meio caminho entre a capital, San Salvador, e Santa Ana, a segunda maior cidade do país, o NI obteve 78% dos votos. Um partido que concorria pela primeira vez seduziu quatro em cada cinco arcenses e implodiu o que parecia ser a ordem estabelecida: nas nove eleições municipais realizadas entre 1994 e 2018, os arcenses levaram a Arena à prefeitura em seis ocasiões, e a FMLN em três.

“Durante trinta anos, as pessoas meio que não viram as mudanças de que a comunidade precisava”, diz Noé Rivera, o novo prefeito de Ciudad Arce, pelo NI. “Surgiu esse fenômeno nacional, o fenômeno Bukele, e todas as pessoas estavam com esse sentimento, porque queríamos mudanças reais; eu mesmo nunca tinha votado.”

Com 72 mil habitantes, Ciudad Arce não é um lugarejo. Há somente vinte municípios mais populosos em todo o país. É a cidade mais bukelista de El Salvador, e por isso foi visitada para esta reportagem.

Ciudad Arce, em El Salvador – Foto: Roberto Valencia

 

O presidente Nayib Bukele nunca visitou Ciudad Arce, ao menos como político. Nenhuma inauguração, nenhum comício, nenhuma reunião de trabalho. De saída, é difícil entender por que, em 28 de fevereiro, os arcenses foram os salvadorenhos que mais apoiaram Bukele nas urnas: quatro em cada cinco eleitores optaram pelo Novas Ideias.

Francis Corona tem 31 anos e é gerente de um motel chamado Hostal Villa Serena, a uma quadra do parque Central. Com um grupo de amigos, ele se engajou de corpo e alma na criação da primeira célula de apoio a Bukele em Ciudad Arce. “Antes eu não ligava a mínima para a política, foi por causa do Bukele que botei fé na política pela primeira vez na vida”, diz ele. “No início, essa onda cresceu empurrada pela vontade dos cidadãos, e mais nada.”

Bukele oficializou sua candidatura à Presidência em 15 de outubro de 2017, poucos dias depois de ter sido expulso das fileiras da FMLN. Naquela noite, ele disse que concorreria representando um “movimento cidadão” surgido do nada, que logo recebeu o nome de Novas Ideias. Esse movimento foi impulsionado por milhares de militantes como Francis, que trabalharam sem nenhuma remuneração.

A coleta de 50 mil assinaturas exigida pela legislação eleitoral salvadorenha para criar um partido político começou no último final de semana de abril de 2018. Centenas de pontos de coleta foram criados em todo o país, mas nenhum em Ciudad Arce. No primeiro dia do mutirão, uma sexta-feira, Francis e seus amigos tiveram que levar os simpatizantes locais até San Juan Opico, a 15 km de distância.

O interesse foi tão grande que já no dia seguinte foram instaladas mesas em Ciudad Arce, lembra Francis Corona, com uma ponta de orgulho. “Era tanta gente indo para Opico que no sábado já demos um jeito para que pudessem assinar aqui”, confirma o prefeito Noé Rivera.

O “fenômeno Bukele” atravessou todos os setores sociais, mas o envolvimento da juventude foi maior, tanto em Ciudad Arce como no resto do país. Mesmo assim, nas eleições presidenciais de 3 de fevereiro de 2019, a candidatura de Bukele obteve apenas 58% dos votos dos arcenses. Cinco pontos acima da média nacional, mas bem longe dos 78% que atingiria nas eleições legislativas de 2021.

 

René Portillo Cuadra é deputado e líder da bancada nacional da Arena, que, apesar de desidratada, continua sendo a principal força de oposição na Assembleia, o órgão legislativo de El Salvador. Portillo Cuadra define Bukele como um populista típico e atribui sua fulgurante ascensão ao êxito em convencer os salvadorenhos de que “ia combater a corrupção, eliminar a pobreza, dar empregos às pessoas… e as pessoas caíram nessa conversa”. Como oposicionista, ele acredita que, mais cedo ou mais tarde, os salvadorenhos vão abrir os olhos e que a popularidade de Bukele — que ele não nega — cairá tão rápido quanto subiu. “Todo mundo associa a palavra bukelismo à tirania, à ditadura”, diz ele, “tanto que os apoiadores de Bukele nem usam essa palavra”.

Para seus apoiadores, o bukelismo tem outro sentido: é o projeto político liderado por Bukele, afirma ara Walter Araujo, uma das vozes mais ruidosas e agressivas da rede de propaganda pró-Bukele, um personagem que só não é deputado pelo NI porque sua candidatura foi barrada na Justiça. Seu primeiro tuíte usando o termo, para anunciar “no mínimo 25 anos de bukelismo”, data de 15 de abril de 2021. Aos poucos, vencendo certa relutância inicial, os governistas estão tentando se apropriar da palavra. O antropólogo Marvin Aguilar, frequentador assíduo de debates de televisão e rádio, apoiou com entusiasmo a criação do Novas Ideias e chegou até a disputar uma pré-candidatura a deputado, mas, depois de fracassar nas primárias, tornou-se mais crítico. Usa as palavras “bukelismo” e “bukelistas” em seus escritos porque, segundo ele, já estão muito difundidas, mas prefere esperar as eleições presidenciais de 2024 antes de asseverar que se trata de um fenômeno político que chegou para ficar. “Eu diria que o bukelismo é uma fusão de autocracia e populismo”, arrisca, diante da minha insistência para que o definisse.

Álvaro Artiga, professor da Universidad Centroamericana “José Simeón Cañas” (UCA) e um dos cientistas políticos mais conceituados do país, é ainda mais cauteloso: “Eu não ousaria dizer que existe um bukelismo neste momento; acho que seria tentar se antecipar a um cenário provável.”

Para Artiga, o governo de Bukele é indiscutivelmente autoritário, mas com uma nuance fundamental: o regime não é. Segundo ele, “com a reforma política de 1992, instaurou-se em El Salvador um regime híbrido que mescla elementos democráticos com um exercício autoritário de poder, e tem sido assim desde o primeiro governo da Arena. Com Bukele, eu diria que esse regime híbrido não foi alterado em sua lógica de funcionamento; só que agora a concentração de poder nas mãos do governante parece mais visível, ao passo que antes havia uma distribuição entre os dois grandes partidos, mas a máquina funciona do mesmo modo.”

Bukelismo é um conceito em gestação. Uma busca no Google, feita enquanto digito estas palavras, devolve 16.600 ocorrências. E aumentarão mais e mais.

Da boca dos especialistas entrevistados surgiram comparações de Nayib Bukele com Daniel Ortega, com Donald Trump, com Jair Bolsonaro, mas a mais recorrente foi com Hugo Chávez, com a Venezuela, com o chavismo.

Não deixa de ser curioso.

El Salvador rompeu relações diplomáticas com a República Bolivariana da Venezuela em novembro de 2019 e reconhece Juan Guaidó como presidente, não Nicolás Maduro. Investigações jornalísticas também revelaram que importantes assessores da oposição venezuelana, como Lester Toledo e Sara Hanna, trabalharam ou trabalharam para Bukele.

“Se ele for reeleito em 2024, o que a Constituição salvadorenha não permite, estaria seguindo os mesmos passos do chavismo”, diz o antropólogo Marvin Aguilar.

“O apoio que o presidente tem aqui é impressionante; esse é um fato novo em relação ao que aconteceu nas décadas passadas, mas não significa que este já seja um regime totalitário, como a Venezuela”, diz o cientista político Álvaro Artiga.

“Acho que é muito cedo para saber se Bukele será tão duradouro em El Salvador como o chavismo na Venezuela, mas o fato é que a transparência e o acesso à informação pública já estão desaparecendo no país”, diz Tim Muth, um advogado norte-americano de 60 anos que, em seu blog El Salvador Perspectives analisa a realidade salvadorenha há quase duas décadas.

 

No início de 2021, vigorava uma lei que reservava 10% do orçamento geral da República às prefeituras. A nova legislatura, com uma esmagadora maioria do Novas Ideias, começou os trabalhos em 1o de maio e já está empenhada numa reforma da lei — proposta pela Presidência — que permitirá ao governo central reduzir a alocação a 1,5%, além de criar uma instituição centralizada que assumirá a coordenação dos investimentos nos municípios.

“Com a reforma dos fundos para os municípios, alguns prefeitos talvez não entendam por que o presidente toma esse tipo de decisão, mas isso, de certo modo, é como a fé: se você acredita numa pessoa, vai apoiar essa pessoa para o bem e para o mal, não é?”, diz o prefeito Noé Rivera.

Para Bukele e sua popularidade, a reforma é um jogo de ganha-ganha. Sua administração vai transferir menos dinheiro para as prefeituras, e três quartos das verbas serão administrados pelo governo central, que poderá creditar a si mesmo o mérito dessas obras, investimentos, inaugurações.

O prefeito Noé Rivera optou pela resignação: “minha Prefeitura não é autossustentável, mas compartilho a visão do presidente sobre os fundos municipais.” Para equilibrar seu orçamento e conseguir recursos para obras, ele diz que vai aumentar os impostos e taxas sobre os arcenses, o que não ajudará a amenizar o crescente descontentamento em relação à sua gestão e à sua pessoa.

No Relatório 2021 da Corporación Latinobarómetro, El Salvador e Bukele aparecem com destaque. “El Salvador é um sério candidato a se transformar em uma autocracia populista, com altos níveis de apoio popular. Um fenômeno que guarda certas semelhanças com as características iniciais de Hugo Chávez”, lê-se na página 23.

Na primeira metade dos seus cinco anos de mandato, Bukele conseguiu urdir uma poderosa e cara rede de propaganda e adulação que inclui jornais impressos, emissoras de rádio, noticiários e sites; redes privadas de televisão que venderam docilidade em troca de pauta; bombardeio publicitário em pontos de ônibus, nos próprios coletivos, abrigos etc.; e, claro, a fortaleza nas redes sociais que o acompanha desde o início de sua aventura presidencial, com youtubers, tweeters, tiktokers e instagramers elogiando-o noite e dia, às vezes de graça, às vezes não.

Os assessores de Bukele se empenham em manter a popularidade do presidente alta, e os números indicam — pelo menos até agora — que eles não estão se saindo mal. Apoiadores de Bukele fazem uma inequívoca aposta em potencializar a figura do presidente como líder messiânico. Todas as propostas políticas, comunicacionais e até simbólicas que partem do governo giram em torno dele. 

Dependendo do campo ideológico de onde partem as críticas a Bukele, logo surgem comparações com o trumpismo ou o bolsonarismo, quando vêm da esquerda, ou com o orteguismo ou o madurismo, quando da direita. Mas todas essas comparações têm um ponto fraco: Bukele desfruta de uma aceitação entre os salvadorenhos que todos esses modelos adorariam ter. Um dia isso há de mudar — se muito ou pouco, o tempo dirá —, mas o impressionante apoio de seus governados depois de mais de dois anos de mandato é um dado diferencial.

A visão autoritária de Bukele materializou-se na militarização da Assembleia, no afastamento do procurador-geral e na dissolução da comissão da Corte Suprema incumbida de julgar se os atos da Presidência têm amparo na Constituição. O autoritarismo também é explícito na aposentadoria forçada de centenas de juízes, no acobertamento da corrupção e do nepotismo do seu círculo mais próximo, nos seus ataques ao jornalismo crítico, no aparelhamento das instituições de controle e no ocultamento de informações públicas. Uma situação que, vista em conjunto, explicita os problemas do presidente salvadorenho com o Estado de Direito e com a democracia.

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