Perfil | A relevância da eleição peruana aos olhos de

Uma chance de barrar o projeto neoliberal e caminhar rumo a uma nova Constituição. É assim que Soledad Requena, imigrante peruana em São Paulo (SP), enxerga as eleições em seu país de origem.

Entre idas e vindas, ela passou 12 dos seus 63 anos do lado de cá da fronteira e se tornou referência para trabalhadores migrantes na capital paulista.

Ansiosa para o pleito de 11 de abril, Soledad traça paralelos entre a história recente de Brasil e Peru para explicar por que considera esta eleição tão relevante.

Cada capítulo da sua trajetória está permeado por mudanças políticas, avanços e recuos democráticos nos dois países, marcados pela exploração colonial, governos autoritários e tentativas de resistência.

::A um mês das eleições, quase metade do eleitorado peruano não sabe em quem votar (reportagem de 13 de março de 2021)::

Primeiros passos

Soledad nasceu em Huancavelica, na região andina, a 430 km da capital Lima. A cidade, que abriga a maior jazida de mercúrio da América Latina, também possui reservas de ouro e prata, exploradas pela Espanha desde o século 17.

A riqueza do solo contrasta com a precariedade das condições de vida na região. A província de Huancavelica reúne alguns dos distritos mais pobres do Peru, e a falta de oportunidades fez com que a família de Soledad migrasse para Lima cinco anos após seu nascimento.

“Esse fenômeno de migração interna é muito similar ao que ocorreu no Brasil [entre as décadas de 1930 e 1950], quando milhares de nordestinos migraram a São Paulo e a Brasília”, compara a peruana.

Peru vai às urnas no dia 11 de abril / Arte: Brasil de Fato

A primeira mudança ao Brasil foi por motivos familiares. Soledad casou-se com um brasileiro e, em 1985, passou a morar em Minas Gerais.

“Além disso, a situação no meu país estava muito convulsionada pelo conflito interno”, detalha a peruana. “Vivíamos uma guerra entre militares e paramilitares contra o Sendero Luminoso e os Túpac Amaru. Apareciam mortos nas praças, havia ameaças contra todos que pensavam diferente do governo na época, e isso causava muito medo”

O Sendero Luminoso é uma organização política de esquerda, formada em 1964 por dissidentes do Partido Comunista do Peru (PCP). O movimento revolucionário Túpac Amaru foi fundado 20 anos depois, inspirado nas guerrilhas de países vizinhos e no antifascismo.

A escolha pelo Brasil também foi motivada por razões políticas.

“Fomos atraídos porque o Brasil estava em um processo democrático, de abertura, de retorno dos exilados políticos. Já estava no ar o pensamento da Constituição de 1988, enquanto países vizinhos ainda enfrentavam ditaduras militares”, lembra.

Retorno ao Peru

Em solo brasileiro, Soledad teve oportunidade de cursar faculdade, mas conviveu com o preconceito étnico e de classe social dentro e fora da sala de aula.

Com dois filhos e divorciada, ela decidiu retornar ao Peru em 1990 para fazer um mestrado em políticas públicas e igualdade de gênero. No mesmo ano, começava a ditadura de Alberto Fujimori, que duraria por toda a década.

Para enfrentar as crises política e econômica, o presidente peruano promoveu um choque neoliberal – a exemplo de Augusto Pinochet, no Chile, em 1973. A ideia era reduzir o Estado o quanto fosse possível, preservando seu braço repressor.

“Fujimori entra para destruir o Estado. Aplicou-se um modelo de privatização, o modelo de mercado, onde o Estado não vale, e o que prima é o capital”, ressalta Soledad.

“O que hoje vocês tiveram com [Michel] Temer, na reforma trabalhista, nós tivemos com Fujimori, que implementou uma reforma que destruiu todos os direitos laborais conquistados nas décadas anteriores”, completa.

A Constituição de 1993, imposta por Fujimori, está vigente até hoje e é uma das razões pelas quais Soledad confessa seu apoio à candidata Verónika Mendoza, da chapa Juntos pelo Peru – que tem como prioridade promulgar uma nova carta constitucional.

“Trata-se de uma herança macabra, que não permite qualquer parâmetro de democracia, e ela [Verónika] se propõe a mudar”, diz.

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A migrante peruana chama atenção para uma aparente contradição durante o governo de Fujimori. Embora os números apontassem um crescimento inédito do Produto Interno Bruto (PIB), chegando a 6% ao ano, mais de 3 milhões de pessoas decidiram deixar o país, entre 1990 e 2015, por falta de oportunidades.

Soledad Requena engrossou essa estatística quando retornou ao Brasil, em 2005, para trabalhar na formação de professores da rede pública.

Na época, ela orientava os docentes sobre o conceito de transversalização de gênero nas políticas de educação. Ou seja, capacitava-os para avaliar as implicações de ações, políticas ou programas sobre as pessoas de gêneros diferentes.

Além da possibilidade de ficar perto dos filhos, pesou na escolha pelo Brasil a qualidade dos sistemas públicos de educação e saúde.

“O peruano reconhece: a época com mais oportunidades no Brasil foi a época do PT. Mesmo quem não defende Lula ou o PT, reconhece que tinha bolsa de estudos, investimento em institutos federais, oportunidades de trabalho naquele momento”, ressalta.

Contato com migrantes

Soledad voltou várias vezes a seu país de origem desde então. Ela orgulha-se de ter participado de lutas pelos direitos de crianças e adolescentes no Equador e no Peru, junto à Conferência Episcopal Peruana, grupo ligado à Unicef.

O trabalho com migrantes de várias nacionalidades começou em 2014, já em São Paulo.

“A realidade de discriminação que eu enfrentei desde os primeiros anos no Brasil fez com que, em São Paulo, eu me conectasse diretamente com meus pares”, conta.


Soledad [de calça preta] compartilha experiências com jovens em São Paulo / Divulgação

Em 2015, Soledad conheceu o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI) e foi convidada a dar suporte para um projeto do Instituto C&A, dedicado a identificar e aprimorar as condições de trabalho na cadeia da moda.

Milhares de imigrantes bolivianas e centenas de peruanas encaram jornadas exaustivas em oficinas de costura, em locais insalubres, com diferentes violações trabalhistas.

Soledad trabalha para informá-las sobre seus direitos, possibilidades de formação e capacitação, e contribui para criar redes de afeto que fortalecem a autoestima dessas profissionais.

Entre suas contribuições está a criação das Rodas de Conversa, encontros semanais onde as mulheres compartilham suas histórias, dificuldades e medos, e ao mesmo tempo adquirem ferramentas para desenvolver sua autonomia.

“Cerca de 95% dos peruanos em São Paulo e no Rio de Janeiro são trabalhadores informais, muitos deles expostos ao trabalho análogo ao de escravo”, diz.

Até 2015, quatro mil migrantes peruanos residiam em São Paulo. “Esses números estão desatualizados, porque só conta os que estão regularizados. Antes da pandemia, se falava em 30 mil peruanos no Brasil todo, e a maioria em São Paulo”, afirma Soledad.

Coordenadora de projetos do Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (Cemir), ela alerta que os cortes no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) podem causar um “apagão” de políticas públicas.

“No ano passado, com os primeiros cortes orçamentários, já tinha sido excluída a variável ‘imigrante’, e isso nos preocupou enormemente. Nós precisamos desse censo para saber quem são, quantos são os migrantes, em que condições vivem e quais as suas necessidades”, reforça Soledad.

Por um caminho inverso ao Brasil

Se em meados dos anos 1980 e 2000 o Brasil era visto como inspiração, hoje Soledad quer que o Peru tome um caminho oposto nas eleições.

Para ela, Jair Bolsonaro (sem partido) remete aos anos sombrios do fujimorismo.

“Fujimori utilizou o conflito político para tentar acabar, não com o ‘terrorismo’, mas com a esquerda, os setores democráticos, progressistas, os setores liberais. Nessa era, todo o tecido social foi desestruturado. E aí, vem o meu medo de Bolsonaro, que faz o mesmo: por meio do populismo tenta justificar a repressão e a perseguição”, analisa.

Soledad reconhece que muitos de seus conterrâneos não têm a mesma preocupação. Além do preconceito com as candidaturas de esquerda, predominam a desinformação e a apatia em relação à política.

“Isso tem uma explicação. É uma sequela traumática da época de perseguição no meu país. Muitos falam que não vão votar na Verónika porque ela seria terrorista, e aí temos que explicar que ela é democrata, que quer fazer uma nova Constituição”, diz.

“É uma campanha de fake news horrível, mas ainda assim ela está próxima dos líderes nas pesquisas e tem condições de ganhar”, completa Soledad, que alimenta a esperança de eleger a primeira presidenta mulher da história peruana.


Verónika Mendoza é a principal representante de esquerda nas eleições / Reprodução

Quem lidera as pesquisas eleitorais, por margem mínima, é Yonhy Lescano, do tradicional partido Acción Popular, de centro-direita.

Soledad analisa os demais candidatos com as lentes de quem acompanha de perto a política brasileira. “Podemos dizer que o [ex-goleiro George] Forsyth é um Luciano Huck. López Aliaga é muito parecido com (Jair) Bolsonaro. E [Julio] Guzmán é um [João] Doria da vida”, compara.

Os candidatos que defendem abertamente o fujimorismo são Hernando de Soto, que se define como liberal, e Keiko Fujimori, filha do ex-ditador.

Voto no exterior

Ao contrário dos peruanos residentes no país, quem emigrou não é obrigado a votar nas eleições 2021. A isenção só não se aplica aos membros de mesa sorteados, segundo o Consulado.

Em São Paulo, o horário de votação é das 8h às 16h, e o uso de máscaras é obrigatório, sem permissão para entrada de acompanhantes.

No momento da votação, é necessário apresentar o Documento Nacional de Identidade (DNI) original.

Para consultar seu local de votação ou saber se foi convocado para trabalhar como mesário no domingo, basta acessar o site do órgão eleitoral.

Edição: Vinícius Segalla

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